Perseverança em Ciência – O Exemplo do Casal Curie
A descoberta da radioatividade natural originou-se das atividades de cientistas que se sucederam no fim do século XIX. Ela exteriorizou uma seqüência que merece ser acentuada: a observação inteligente, a metodologia disciplinada e a perseverança nas buscas.
I – A conquista inicial partiu de Röntgen, em 1895, com o reconhecimento dos raios X e já foi mencionada no número de novembro desta Revista. Foi o fruto de ocorrência não original, mas até o momento não observada com a atenção adequada por vários cientistas.
II – A segunda decorreu de pesquisa de Henri Becquerel quando manuseava compostos de urânio, que emitiam radiação à exposição à luz. Em uma ocasião (1896) retirou, para estudo, minerais que se encontravam encerrados em gaveta e, portanto, em ambiente escuro. Antes de qualquer atividade teve o cuidado de verificar o estado das peças, em obediência a um requisito de metodologia que exige avaliação prévia de material utilizado mesmo em condições iniciais de presumida normalidade. E observou, com surpresa, a presença de radiação impressionando chapas fotográficas. Estava diante de uma conquista – a da radiação natural – mas aproximou o fenômeno ao reconhecido por Röntgen.
III – A etapa final caracterizou-se pelas atividades do casal Curie, realizadas em ambiente precário, quase miserável, em anos de perseverança e dedicação. Marido e mulher já credenciados por qualidades morais e pelo passado científico. É esta tarefa que exporei agora, exatamente no mês que completa os 102 anos da vitória final.
Ela, Marie Sklodowska (1867-1934) em solteira, polonesa, com estudos em Paris, desde os 24 anos, Licenciada em física e em matemática, com grande preparo nesta disciplina.
Ele, Pierre Curie (1859-1906), físico, também com títulos em matemática e com trabalhos sobre piezoeletricidade. Distinguia-se pelo rigor intelectual e por repulsa a competições .
Ambos refratários à publicidade e mesmo, a homenagens. Marie, já célebre recusou por duas vezes a Legião de Honra e Pierre, em 1905, não se manteve à vontade quando eleito para a Academia de Ciência e não aceitou decoração na Escola de Física.
O que vou rememorar nesta coluna é o ambiente de seus trabalhos e a perseverança diante dos impecilhos. O passado de ambos já exigira suas resistências. As pesquisas de Pierre sobre cristais, em horas livres de suas tarefas na Escola de Física e Química Industriais eram realizadas em estreito passadiço local e Marie já vivera em mansarda.
O ambiente – A enorme atividade de ambos exerceu-se em ambiente medíocre, insalubre, deprimente, inaceitável a espíritos menos nobres.
Tratava-se de hangar desocupado e abandonado, utilizado anteriormente, como gabinete de dissecção por alunos de Faculdade de Medicina. O teto, envidraçado e esburacado, não oferecia proteção e o solo era irregular com leve camada de betume sobre a terra. A mobília consistia apenas de velhas mesas e de um quadro negro.
Em Paris, com as estações meteorológicas acentuadas, um velho aquecedor de ferro não oferecia proteção contra o frio e a chuva. E, no verão, o ambiente era o de uma estufa. Na observação de um químico alemão (seg. F. Giroud, biógrafa de Marie) o hangar parecia despensa ou estrebaria.
Nessa espelunca o casal trabalhou e ¾ na verdade viveu ¾ durante quatro anos ininterruptos.
E mais tarde ainda enfrentaram dificuldades até financeiras, apesar das numerosas manifestações de homens de ciência de toda a Europa. Em 1903, um jovem físico, Georges Sagnac, em carta a Pierre expoe sua preocupação com o estado de saúde de Marie, após um encontro em sociedade científica. E até ousa criticar o casal pelo trabalho exaustivo e por alimentação deficiente, invocando seus próprios deveres para com a filha Irene.
O método de trabalho e a conquista – Conhecendo os achados de Becquerel, Marie desprezou o papel isolado do urânio e analisou inúmeros compostos químicos na busca de radiação por seus eventuais componentes. E assim a pechblenda..
Foi trabalho longo, monótono, cansativo que executou com o auxílio seguro do marido. Como informa a filha Eva, em biografia da mãe, manuseava até vinte quilos do mineral, enchendo grandes vasilhas com líquidos e precipitados. E acentua o "trabalho extenuante", mantido durante horas, no ato de mexer a matéria em ebulição em bacia de ferro.
Após quatro anos de buscas os pesquisadores obtiveram os resultados impressionantes que conhecemos. Comprovaram que o tório emite raios comparáveis aos do urânio e, portanto, a não exclusividade deste. Admitiram, então, a presença da denominada radioatividade, em minerais que devem ser considerados como "radioativos".
Em abril de 1898 comprovaram que dois minérios de urânio, a pechblenda e a chalcolite mostravam-se mais ativos que o próprio urânio.
Surgiu-lhes, então, a atraente possibilidade da presença de novo elemento mais poderoso. Como a radioatividade manifestava-se principalmente em duas frações da pechblenda, tornava-se provável a existência de dois corpos desconhecidos, dotados desse poder. Em 18 de julho de 1898 anunciaram a descoberta do polônio, assim batizado em homenagem à pátria da pesquisadora. Finalmente, em dezembro desse ano anunciaram, em comunicação à Academia de Ciências, a descoberta de outro elemento, "com enorme radioatividade", que recebeu o nome de radium. Substância tão poderosa que, mesmo em proporções mínimas no minério total, acarretava efeitos impressionantes.
Estava, portanto, completa a admirável seqüência de investigações, desde o trabalho de Röntgen.
E abria-se um novo campo de estudos com a análise das propriedades do novo corpo. Basta recordar que de 1899 a 1904 o casal Curie fez 32 comunicações científicas, várias das quais com a colaboração de outros.
A austeridade ¾ A evolução dos acontecimentos veio comprovar que, mesmo nos dias difíceis, a elevação moral não declinou. Em 1904, engenheiros norte-americanos, de Buffalo, decidiram explorar as possibilidades do rádio e consultaram Pierre sobre a obtenção de patente. Em nome da ciência o casal recusou a oferta. Compreende-se facilmente a magnitude da decisão perante a fantástica riqueza ulterior dos manuseadores do rádio.
Em 1921, Marie transferiu ao seu Instituto do Radio, o gramo do corpo recebido do presidente Harding, quando de sua visita aos Estados Unidos. A razão foi a recusa à eventualidade do rádio tornar-se propriedade da família.
A morte trágica de Pierre interrompeu um período de felicidade no lar e de amparo do físico, mas não anulou as atividades da pesquisadora. Ainda viveu 28 anos, manifestando-se cientificamente, agora reconhecida, homenageada e requisitada em vários países. E conheceu também a ação deprimente da maledicência.
Em julho de 1914 foi terminado o Institut du Radium, que Eva Curie denomina o "templo do futuro".
Surgiu então a guerra e nela Marie desenvolveu intensa atividade, com criação de postos de raios X em vários dos hospitais de Paris para exames dos feridos.
Felizmente, o mundo dos homens de ciência soube reconhecer suas conquistas. Recebeu duas vezes o Prêmio Nobel: o de Física, em 1903, em companhia do marido e de Becquerel e o de Química, isolada, em 1911.
Como acentuei no início desta exposição, a descoberta da radioatividade natural veio ultimar um percurso científico lógico e fecundo, estabelecido por atividades comparáveis, mas essencialmente complementares, de cientistas categorizados.
Em verdade, esse trajeto representa uma lição. E ela não será esquecida.
Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt