Conquista com Sofrimento - Semmelweis e a Febre Puerperal

Uma simples visão da História de Ciência evidencia o grande desenvolvimento que esta apresentou em todos os setores, desde a primeira metade do século XIX. E nesta ocorrência destacou-se também a medicina. Não nos cabe, no momento, uma análise dos fatores sociais básicos, com a liberdade de pensamento favorecida pela eclosão anterior da Revolução Francesa e com a participação de classes economicamente menos favorecidas.

As buscas mais profundas em física e em química enriqueceram nosso campo de atividades, mas este alargou-se de modo amplo, mesmo em estudos anatomopatológicos e no amparo aos doentes, em clínica geral ou especializada. A atmosfera, portanto, era a de conquistas e de futuro promissor.

As mentes dos homens, contudo, ainda podiam permanecer ligadas ao passado, por ignorância, por comodismo ou por conveniência e reagindo com ciúme e com inveja às conquistas dos mais jovens.

Nessa época ocorreu, então, uma situação hoje quase inexplicável. E ainda lamentável pelas conseqüências, que conduziram à morte um grande batalhador no setor da obstetrícia, lúcido intérprete de entidade quase sempre mortal.

O MÉDICO - O médico húngaro Ignaz Phillip Semmelweis (s), (1818-1865) estudou na universidade de Pest e na de Viena, graduando-se em 1844. Na Escola de Medicina desta cidade deve ter se destacado nos estudos pelo reconhecimento manifestado por seus mestres, expoentes na época, como o clínico Josef Skoda, o dermatologista Ferdinand Von Hebra e o anatomopatologista Karl von Rokitansky. Um discípulo deste, Jacob Kolletschka foi seu amigo e objeto de alta consideração.

Após a graduação, mesmo sendo húngaro, foi nomeado professor assistente na Maternidade, então sob a direção do Prof. Johann Klein.

Não era homem de trato fácil, sendo persistente e mesmo rude e impaciente na defesa de seus princípios, mas um grande médico com a visão "humana" do sofrimento de suas doentes.

A CONQUISTA - O seu trabalho que nos interessa foi o dedicado à então denominada "febre puerperal", que, na ocasião, acarretava impressionante taxa de mortes, constituindo-se em motivo de terror para as mulheres em fase de parto. O desconhecimento da etiologia impedia qualquer medida profilática.

Uma série de ocorrências, habituais há anos, conduziu Semmelweis a uma lúcida compreensão do problema, com a certeza final da presença de processo infeccioso.

Em seu grande livro, de 1861, Die Aetiologie, der Begriff und die Prophylaxis des Kindbettfiebers (A etiologia, o conceito e a profilaxia da febre puerperal), pública, como "Introdução autobiográfica", os aspectos principais do seu raciocínio.

Em primeiro lugar a observação surpreendente que as mulheres que pariam nas ruas sofriam menos que as atendidas no Hospital de Viena apesar das condições menos favoráveis dos locais. A afecção era também mais freqüente na Ia Clínica, receptora das parturientes em fases iniciais, que na II, que abrigava as que davam à luz nas ruas. E, ainda, que portadoras de partos prematuros eram menos atingidas. Essas ocorrências fizeram-no crer na presença de fatores "não epidêmicos, mas endêmicos", ainda desconhecidos e inerentes à Ia Clínica.

Outras duas observações, atuaram sobre o seu cérebro já consciente e lhe forneceram a certeza do estado infeccioso: a) as condições dos médicos e estudantes que manuseavam as parturientes e b) o falecimento do Prof. Kolletschka.

Os primeiros mantinham contato com as enfermas e os cadáveres e, portanto, com "partículas transmissoras". A lavagem habitual das mãos com água não era suficiente para sua remoção. A prova estaria, além disso, no "odor cadavérico que as mãos conservavam por tempos variáveis". Desta forma, os agentes causadores seriam transmitidos.

A morte do Dr. Kolletschka (1847), professor de Medicina Legal, forneceu o exemplo definitivo da ocorrência. Em sua rotina de trabalho realizava autópsias em companhia de estudantes. Em certa ocasião, durante a tarefa, foi ferido por um deles com o mesmo instrumento utilizado no cadáver. "Contraiu linfangite, peritonite e meningite" e apresentou "metástase em globo ocular". Esses aspectos mórbidos eram também observados em múltiplas das mulheres que faleciam.

Diante da ocorrência, escreve ainda Semmelweis, "durante dias e noites fui obcecado pela imagem da doença de Kolletschka e forçado a reconhecer, decisivamente, que a sua moléstia era idêntica à que matava as pacientes na maternidade". Por outra, algumas autópsias de recém-nascidos revelavam aspectos comparáveis. Chega, então, à conclusão de doença causada por "partículas cadavéricas introduzidas no sistema vascular" e estende-se no texto do livro sobre as condições da transmissão que fundamentavam sua certeza.

Para combater a ocorrência recomenda, então, a lavagem das mãos com água clorada a ("clorina líqüida") . Essa medida salvadora foi iniciada em maio de 1847 e os resultados foram impressionantes, com queda da taxa de mortes, de 12,24% a 3,04% ao fim do primeiro ano e a 1,27% ao término do segundo (Enciclopédia Britânica, 1956). Obtinha-se, pois, um magnífico trabalho médico que praticamente abolia a doença mortal com o afastamento da responsabilidade dos próprios profissionais.

O SOFRIMENTO - A concepção, lógica, de Semmelweis enfrentou, entretanto, uma repulsa inverosímil. Não apenas de seu chefe, o Prof. Klein, por razões pessoais, de ciúme, de inveja e de vaidade, como de inúmeros obstetras. Manifestações de apoio partiram dos três grandes médicos mencionados no início desta dissertação, mas foram vozes isoladas. Sua opinião de que a simples higiene das mãos dos médicos, estudantes e parteiras conseguia evitar a gravíssima doença, parecia aos colegas apenas proposta ingênua e descabida. E a publicação de seu livro apenas exacerbou a resistência.

Curiosamente, por outra, a presença de infecção já fora reconhecida por médicos de língua inglesa, como por exemplo, Charles White, que recomendava o isolamento das doentes febris, em 1773 e Oliver Wendell Holmes que reconhecia o caráter contagioso da febre, em 1842. Essas concepções esclarecidas não atraiam, entretanto, influentes professores de obstetrícia, devendo ser salientado que, ainda em 1851 a Academia de Medicina de Paris, manifestava-se contra a natureza infecciosa da febre. Como consolo, devemos reconhecer que esta opinião era combatida por alguns acadêmicos de categoria, mas só em 1874 a técnica proposta foi admitida na Maternidade do Hospital Cochin.

Em conseqüência de todas essas tristes circunstâncias, foi Semmellweis expulso de Viena em 1849. Felizmente, tornou-se professor de obstetrícia na Universidade de Budapest, em cuja maternidade ocorria a mesma taxa de mortes que em Viena. Durante anos lutou com energia, com determinação e com persistência por suas convicções. Até mesmo, com rudeza, denunciando os opositores como "assassinos" das doentes. E, então, suscitando reservas e inimizades.

Suas características mentais foram se agravando, sendo então recolhido em um asilo para doentes mentais, onde faleceu em 18.VIII.1865 por infecção em ferimento na mão.

Esta breve síntese de um caminho tão longo nos fornece uma certeza. Seu potencial de trabalho permitiu uma das mais significativas conquistas da medicina preventiva, acompanhada por nobre campanha de esclarecimento e de apoio. Foi um grande médico e um grande mártir. Não o único, evidentemente, mas, sem dúvida, um dos maiores. Como reconhecimento tardio (!) foi lhe erguido , em 1894, um monumento em Budapest.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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