A Aceitação da Morte em Novela Russa

O tema da coluna de hoje refere-se a um drama presente na quase totalidade de nosso trabalho: o da nossa adversária, a morte. Sempre triste mas com características espirituais diversas, de pânico, de revolta, de tranqüilidade e, até, de aspiração. Uma apresentação impressionante da angústia de um enfermo perante o futuro demolidor encontra-se em novela do grande Leão Tolstoi, homem que ainda nos atrai por seu gênio e por sua escolha de vida. Trata-se de A MORTE DE IVAN ILITCH, publicada em 1886. E dela destaquei trechos que falam e que comovem, obtidos, em nossa língua, por tradução de Carlos Lacerda (1944).

O HOMEM E O AMBIENTEIvan Ilitch é Juiz no Tribunal de Relações. Representa o funcionário rigidamente ligado ao seu dever, considerado como "dever" tudo o que os superiores impõem. Aliás, essa inata obediência é característica presente em várias das antigas novelas russas, tudo se passando como se, em épocas passadas, ocorresse, como norma, a seqüência obrigatória no funcionalismo. Não era adulador, mas desde a mocidade sentira-se atraído por pessoas que ocupavam posições elevadas, "como mariposa pela luz" . Como todos, viveu, com prazer , aventuras da mocidade, mas sempre dentro dos limites "que seu instinto indicava como corretos" . Determinados atos que mais tarde lhe pareciam repulsivos, deixaram de deprimi-lo quando verificou que eles eram também habituais em pessoas de mais elevada categoria social, que não se consideravam faltosos. E aceitava uma expressão francesa il faut que jeunesse se passe.

Para seu casamento escolheu a que lhe era agradável mas também que fora aprovada por seus amigos influentes. A vida familiar pareceu-lhe complicada e penosa, mas exigiu o cumprimento de seu dever, ou seja, o de "atitude de correta aprovada pela sociedade".

Com o tempo foi agraciado com ascenção a uma posição "duas classes acima de seus colegas", mas sempre mantendo atitudes de "agradável perfeição e de decoro".

Em síntese, homem simples, vulgar e disciplinado, com vida insípida e vulgar. Envolto na falsidade e hipocrisia do ambiente, em egoísmo desapercebido e afastador da solidariedade.

A DOENÇA E O AMBIENTE — Na montagem de nova residência em S. Petersburgo sofreu queda ao regular posição de cortina, com trauma no dorso. As manifestações clínicas pareciam desprezíveis de início, mas inexplicavelmente foram se acentuando. As dores aumentaram e tornaram-se limitadoras. Consultou vários médicos que mais o preocuparam por diagnósticos contraditórios e pela ausência de uma certeza sobre a natureza do mal.

Neste momento de nossa exposição cabe uma pertinente observação: nós, os médicos de hoje, não reconhecemos o tipo da afecção. E o grande Tolstoi nos parece inconseqüente e ignorante, ao informar que os facultativos hesitavam entre as possibilidades"de um rim recalcitante, de bronquite crônica ou de apendicite"!!. De qualquer forma as manifestações se nos afiguram afastadas do trauma anterior. O enfermo piorava dia a dia, com dores acentuadas, queda do estado geral e limitação física progressiva. Havia na boca um gosto desagradável e estranho e parecia ele que o hálito tinha mau cheiro. O sofrimento tornava-se persistente e exasperante. Passou, então, a se lastimar continuadamente nos círculos sociais e no Tribunal.

Esse seu desmoronamento mental e corpóreo veio conhecer o efeito depressor de duas ocorrências: a real indiferença das pessoas sadias e, mesmo, o tédio que provocava nelas. Até para a família tornava-se enfadonho, impertinente. Ninguém trazia amparo psíquico e poucos o suportavam. A própria esposa o criticou por não observância das determinações médicas (ineficientes!), atribuindo a ele toda a culpa pelos dias aborrecidos que vivia.

Em momento de grande angústia a esposa entrava em seu quarto com traje de noite para espetáculo em teatro. E a filha, com vestido de gala, chegava alegre e saudável em companhia do noivo, " amorosa, impaciente diante da doença, do sofrimento e da morte porque perturbavam sua felicidade". Por outra, no Tribunal, julgou observar uma estranha atitude em relação à sua pessoa, como se olhassem "um homem cujo lugar deve vagar" e, em compensação (!), parecendo caçoar de seus temores. Com clareza veio comprovando a indiferença que se mantinha e a mentira que alimentava todos; a falsidade no escamoteamento da verdade não para seu amparo, mas para a tranqüilidade pessoal. Após afastamento dos familiares ou despedida de visitantes sentia-se melhor, parecendo que "a falsidade saía com eles"

A única pessoa que o socorria era um camponês (um mujike), Gueresin, jovem e sadio, sempre apto a todas as atividades. Trazia um amparo principalmente nos momentos depressores das excreções, considerando o trabalho repugnante como ocorrência natural de seu emprego. Com o tempo a amizade entre ambos fortaleceu-se, com maior dependência de Ivan, em mais longas conversas e no auxílio necessário para manutenção das pernas elevadas, posição que o aliviava.

A piora sempre atuante, trouxe consigo o terror da morte. Sentia-se como que dentro de um saco negro, nele mantido por uma força invisível e irresistível. O temor persistia e se acentuava apesar de todas as tentativas, anulando qualquer apoio da esperança.

A MORTE SERENA — Nos dias finais ocorreu um sentimento depressor: a análise sincera e lúcida de sua vida passada, com o sentimento dominante de sua vacuidade, de sua superficialidade, de suas iniciativas para obter apenas o que era aconselhável para as pessoas de elevada posição social. Uma existência preenchida somente por interesses mundanos e oficiais. E surgiu, então, uma atitude que Tolstoi caracterizou com precisão: Tentou defender esses aspectos perante si mesmo e subitamente compreendeu a fraqueza do que estava a defender. Não havia nada a defender.

Na seqüência do tempo manifestou-se, entretanto, uma sensação inesperada e recompensadora. Enxergou luz no interior do saco negro e percebeu que sua vida, embora afastada do que poderia ter sido, ainda podia ser corrigida.

Duas horas antes da morte seu filho entrou lentamente no quarto, Sua mão acariciou a cabeça do menino que a segurou, levou-a aos lábios e caiu em pranto. Sentiu pena dele; a esposa o observava com desespero, "em lágrimas e com olhar dramático". Teve pena dela também. Compreendeu que os estava atormentando e que, embora lamentando sua morte, eles sentiriam alívio com sua partida.

Observou, então, claramente que a sensação que o oprimia ia se dissipando e o abandonava. E a dor, mesmo presente, não o agitava: "deixe a dor doer".

O próprio temor da morte, cotidiano e sufocante, não mais se manifestava.

Onde estaria a morte? Que morte? Não havia medo porque não havia morte. Em lugar dela surgia luz e sentiu-se, então, quase alegre.

Sua agonia durou mais de duas horas e quando ouviu a palavra final de um circunstante, Acabou, apenas pensou Acabou a morte; a morte já não existia. Aspirou, então profundamente e faleceu em real serenidade.

Essa longa e dramática novela de Tolstoi faz presente, com grande penetração, uma situação que nós, médicos, acompanhamos durante anos e que representa uma face triste de nosso trabalho.

Ela expõe também a condenação de uma vida egoísta e vazia, apenas socialmente ambiciosa e que deve ser corrigida. E isto ocorre na bela parte terminal do texto, como conquista espiritual. O que justifica o ato de viver é a solidariedade, ativa e iluminada que aniquila o eu egoísta e fornece a paz interior.

Uma lição para todos e, em particular aos médicos, em sua imperativa atuação de sabedoria, mas também de amparo, de compreensão, de tolerância e de paciência.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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