Música para nós, Médicos
A música é fator de encantamento para todos; na diversidade de idades, de épocas, de acontecimentos. Para nós, médicos, que vivemos o sofrimento alheio, representa não apenas a busca da beleza, mas também a conquista de fases de tranqüilidade, de relaxamento, de conforto. Não me refiro aos mais datados, compositores ou instrumentistas, mas aos que, como eu, não apenas capazes de sentir e de amar as peças musicais.
Por isso, nesta coluna serei mais "pessoal", trazendo aos colegas algo do que vive em meu espírito e envolve minhas atividades.
Sabemos que não são raros os exemplos de médicos aptos à análise profunda de obras célebres. E um dos que ainda se mantém em minha admiração é o falecido Prof. Raul Briquet que foi catedrático de nossa Faculdade de Medicina. Sua competência está expressa no admirável estudo que fez do Quarteto XIV (op. 131) de Bethovem, o mais importante de um conjunto de obras magníficas para cordas.
Por outra, compreendemos certas limitações contemporâneas. Não há dúvida que os progressos e as exigências da medicina moderna vêm acarretando nosso maior distanciamento temporal e mental das atividades musicais. E esta ocorrência é lamentável.
A estranha e conhecida frase de Stravinsky na autobiografia "música, por sua própria natureza, é importante para expressar qualquer coisa"deve ser entendida apenas como afronta a oponentes estéticos que atribuiam às peças musicais a fins extra musicais.
Sabemos que ainda na Idade Média um programa de cultura geral abrangia o estudo das sete artes liberais, herdadas da Antigüidade. Elas eram agrupadas em dois conjuntos: o Trivium abrangendo tres artes literárias (Gramática, Retórica e Didática) e o Quadrivium, ulterior, com quatro disciplinas matemáticas (Aritmética, Geometria, Astronomia e Teoria Musical). Como acentuou um competente educador, o Prof. Marrou, a "ciência musical" abrangia essencialmente as leis numéricas q eu regem a harmonia, mas o estudo da estrutura dos intervalos e da rítmica introduzia os indivíduos no mundo da melodia. E a magia permanece.
Não posso deixar de atribuir a elevação de nosso estado espiritual após a audição dos movimentos tanto dos últimos concertos para piano e orquestra de Mozart (K466, K467, K482, K488, K491 e K595). Em particular o de número 21 (k467), cujo Andante nos envolve em belíssima melodia, serena e sonhadora. No mesmo conjunto coloco o Quinteto para Cordas, op. 163, de Schubert, cujo Adagio nos comove profundamente.
Outra peça, bastante diversa, é a "Rapsódia para Contralto coro Masculino e Orquestra", de Brahms (op. 53), construída sobre o poema de Goethe "Jornada de inverno nas montanhas Harz". A música, ligada ao pessimismo alemão tem início sombrio e permanece na visão da miséria humana. A parte final, entretanto, é consoladora com a emocionante súplica dacontralto, provida de um espírito seguro da paz final e que soa como um cântico quase angelical.
E desejo ainda mencionar a imortal "Nona Sinfonia" de Beethovem . Em toda a sua expressividade e beleza, atrai-me particularmente o terceiro movimento, Adagio molto e cantabile, que evoca um mundo de paz interior e de reconhecimento.
Essas obras, na imensidão de tantas vivem em meu espírito há muitos anos sem que a repetição reduza seus poderes espirituais.
Nesses momentos, recordo-me do emocionante ensaio de Aldous Huxley (Music at night), no qual reproduz suas sensações ao ouvir o Benedictus, da Missa Solemuis de Beethovem em noite de meditação. Obra na qual reconhece a consciência da bem-aventurança do artista: "é música que é bem-aventurada e traz a bem-aventurança".
Não há dúvida que a música já pode atuar por impacto emocional imediato, mas, em geral, há necessidade de avanço progressivo para a obtenção plena de seus efeitos. Nessa vivência o caminho é sempre fascinante e deve prosseguir mesmo que com pausas, retrocessos e mesmo desejo de interrupção.
Na impossibilidade da simples menção de milhares de obras desejo apenas recordar certos aspectos desse percurso.
Parece-me que as reservas e hesitações manifestam-se, de preferência, nos dois temporais da evolução: o passado e as tendências modernas.
O Canto Gregoriano, com sua riqueza melódica, mas com rigorosa homofinia não se oferece, de todo, às audições iniciais. Da mesma forma atua a polifonia vocal do fim da época medieval. São peças que exigem meditação.
Depois, a longa vida da música através dos tempos, com a contribuição imortal de tantos anos e em tantos países. O período barroco, a presença dos clássicos,
Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt