William Osler na Intimidade de seu Pensamento

    Nos cem anos decorridos desde meados do século XIX a medicina evoluiu de forma extraordinária em amplitude e em profundidade. E, assim, a atividade clínica, com novos métodos de diagnóstico, com mais sólidas bases físicoquímicas, com moderna aparelhagem complementar, com maior segurança nas medidas terapêuticas. Deve ser ressaltada, ainda, sua fecunda aproximação da bacteriologia e da anatomia patológica, esta em grande desenvolvimento particularmente nos países de língua germânica.

    Nesse período, Sir William Osler (1849-1919), canadense, com reconhecida atividade nos Estados Unidos e radicado na Inglaterra, exerceu mais que qualquer outro homem, extensa e profunda influência sobre a medicina.

    Foi clínico, professor, educador, pesquisador, historiador e humanísta, mas sempre médico, em atitude que pode ser considerada como exercício filosófico da profissão. Sua vida e suas atividades já foram exaustivamente analisadas e elogiadas. Em rápida menção lembremos desde a clássica biografia de Harvey Cushing (1925) até significativos e recentes trabalhos de colegas paulistas: o livro de Raul Marino Jr (1999) e as publicações de Protásio Lemos da Cruz (Arq. Bras. Cardiol., 1991) e de Auro del Giglio (Rev. Bras. Clin. Terap, 2000).

    Não é meu intuito, portanto, nova apreciação de obra tão estudada. Desejo, porém, analisar concepções e pensamentos de Osler reunidos em livro expressivo (Sir William Osler — Aphorisms from his bedside teachings and writings, 1950) pelo anatomista e antropólogo Robert Bennett Bean, que atuou junto a Osler como aluno e como graduado nos anos de 1903 a 1905 e, no momento, editado por seu filho William B. Bean, médico e professor em Iowa. Trata-se, portanto, de significativo depoimento, fornecendo-nos grande número de aforismos originais, colhidos diretamente por contatos pessoais e obtidos "à beira dos leitos". A obra reúne concepções do mestre em cinco capítulos sobre "O estudante de Medicina", a "Ética", o "Enfermo", "Grande República da Medicina", "Epitomes" e finalisa com a conhecida expressão de seu "Epitáfio".

    Na óbvia impossibilidade de completa avaliação, comentarei, neste volume, apenas 27 das três centenas de idéias e máximas, focalizando, de preferência, as referentes a estudantes, mestres e doentes. Se não as mais importantes, pelo menos as que julgo mais educadoras.

    E evidente que quaisquer comentários são supérfluos diante da categoria dos textos, mas apenas os emprego como reações pessoais que desejo comunicar.

    ESTUDANTES E MÉDICOS

  1. "O primeiro degrau para o sucesso em qualquer trabalho é o interesse por ele"
  2. Conselho de valor óbvio.

  3. "A medicina é aprendida à beira do leito e não nos anfiteatros" A palavra
  4. fundamental do verdadeiro clínico.

  5. "A mais rigorosa concepção a ser implantada no espírito de um iniciante é que a
  6. educação específica não é curso colegial, nem mesmo curso médico, mas um curso de vida, para o qual o trabalho de poucos anos sob ensino é apenas preparação" Advertência que repito também, aos meus alunos sobre a amplitude essencial à atividade clínica, em sua eficiente permanência no tempo.

  7. "Não permita que suas concepções sobre as manifestações das doenças originem-se
  8. de palavras ouvidas...ou lidas. Observe e, então, raciocine, compare e julgue. Mas inicialmente observe. Dois olhos nunca enxergam igualmente, nem dois espelhos refletem a mesma imagem. Que a palavra seja sua escrava e não sua mestra. Viva nas enfermarias" Conselhos básicos de médico que atua à beira dos leitos e cuja presença vem se tornando menos freqüente na atualidade.

  9. "O ato importante é retirar de cada caso uma lição para sua educação. O valor da
  10. experiência não está em ver muito, mas em enxergar com sabedoria". Lição normativa particularmente aos recém formados, diante da qual recordo-me de palavras de meu mestre Prof. Lemos Torres, ao invocar nossa eventual atitude de menosprezo a pormenores aparentemente inexpressivos como explicação para discordância entre dados clínicos e de necrópsia.

  11. "Na anamnese siga cada linha do pensamento, mas não interrogue apenas o
  12. essencial; nunca sugira. Leve em consideração as próprias palavras do doente" O real caminho para a expressividade do interrogatório.

  13. "O estudante deve ser emancipado, com tempo e oportunidade para cultura
  14. espiritual, de modo que em seu aprendizado não seja apenas um boneco nas mãos de outros, mas um ser autoconfiante e capaz de refletir" Grande e oportuno conselho a nós professores.

  15. "Pela negligência aos estudos de humanidades, hoje tão generalizada, a profissão
  16. perde uma preciosa qualidade" Julgamento muito próximo de meu espírito e já expresso em palestras sobre o abandono da cultura geral.

  17. "Não utilize ousadamente qualquer medicamento envolto em canto de
  18. sereia...Considere sua própria pessoa e a de seu paciente como se estivessem colocadas em tubo de ensaio". Advertência fundamental, em particular em nossa época, apesar dos enormes progressos em terapêutica. Necessidade de opção entre produtos comparáveis sempre sob exigências do raciocínio e afastada de crenças simplistas ou valorizadas pelo mercado.

  19. "Não gaste seu tempo em compilações, e quando suas observações são expressivas

não permita que elas morram consigo. Estude-as, classifique-as, e procure pontos de contacto que possam revelar leis subjacentes" Princípio essencial na estrutura do que deve ser publicado.

AOS MESTRES

  1. "Nada menos que o melhor no conhecimento e no pensamento do mundo pode

satisfazer um mestre digno do nome" A primeira exigência presente no texto dedicado aos professores.

B) "Ensine o aluno a observar, fornecendo-lhe a plenitude dos fatos a observar e as lições nascerão dos próprios fatos" — Uma lição a nós, professores, para todos os momentos e todas as oportunidades.

C) "No que pode ser denominado método natural de ensino, o aluno inicia-se com o paciente, continua com o paciente e finaliza seus estudos com o paciente, utilizando-se de livros e de leituras apenas como ferramentas, como meios para uma finalidade" — Uma das mais sábias observações sobre o que devemos admitir como medicina.

D) "O mestre eficiente não se coloca em alturas, bombeando conhecimento sob alta pressão a recipientes passivos... ele é um estudante e mais idoso, ansioso para auxiliar os jovens" — A mesma reflexão presente no item A.

E) "Nenhuma bolha é tão iridiscente ou brilha mais longamente que a soprada pelo professor categorizado" — Uma justa afirmação que deve permanecer como caráter de que é bem ensinado.

F) "Nós apenas podemos instilar conhecimentos, colocar o estudante no caminho certo, fornecer-lhe métodos, ensiná-lo como estudar e, em primeiro lugar, capacitá-lo a discernir o essencial e o não-essencial" — O que podemos ensinar não é tudo, mas deve ser o fundamental.

G) "Ao se observar um homem manusear um paciente é fácil reconhecer se ele possui ou não treinamento adequado e, para esse propósito, quinze minutos à beira do leito eqüivalem a três horas em escrivaninha" — Reflexão sobre a capacidade de observação do próprio mestre.

H) "Uma grande universidade possui duas funções, estudar e pensar" — Lamentavelmente essa grandeza não comparece com a freqüência desejada.

I) "Há um tipo de escola que sempre julguei ser o Hospital: um local de refúgio para os pobres da cidade, um lugar onde novos pensamentos são materializados em pesquisas, uma escola onde homens são encorajados a fundamentar a arte sobre a ciência da medicina, uma fonte na qual os mestres recebem inspiração, um ambiente com cordial acolhimento a todos os práticos que desejam ajudar, um centro de consulta para toda a comunidade em ocorrência de problemas" — Nela há a acrescentar a essa bela visão, tão médica, tão social, tão humana.

Em síntese, lições a nós professores; considerações sábias, oportunas e mesmo essenciais, para atuações corretas e fecundas na formação de futuros médicos. Mensagens que não propõem recompensas, mas que exigem deveres.

Ao lado dessas concepções desejo expor ainda duas manifestações; certas máximas que integram o capítulo "Epitomes" e a eventual ironia que comparece como curiosidade.

No primeiro setor ocorrem diagnósticos que não serão estudados e pensamentos sobre a Arte Médica, que comentaremos.

  1. "Quem pode falar das incertezas da medicina como arte?" — Dúvida do clínico
  2. experiente perante o próprio sentido de arte.

  3. "A prática da medicina é arte baseada em ciência" — Prudente resposta ao item
  4. acima.

  5. "Medicina é uma ciência de incerteza e uma arte de probabilidade" — Complemento
  6. lúcido das manifestações anteriores.

  7. "Freqüentemente a ignorância pode ser atormentadora; é porém mais aceitável que
  8. a segurança que permanece sobre uma delgada camada de conhecimento" — Situação compreensível e indiscutível, mas habitualmente comprometida pela vaidade.

  9. "Falar de doenças é uma espécie de entretenimento das "Mil e Uma Noites"

Afirmação de quem vive a medicina.

No campo das manifestações irônicas três merecem ser lembradas.

  1. "Existem dois tipos de doutores: os que atuam com os cérebros e os que o fazem com
  2. as línguas".

  3. "O médico que se automedica tem um louco como paciente"
  4. "A superficialidade das leituras acarreta bursite do ísquio"

A concisa apresentação de aspectos do pensamento íntimo de Osler nesta coluna parece-

me suficiente para o reconhecimento de suas qualidades no exercício e na orientação da atividade clínica. E que foram transformadas, no tempo, em lições sobre o aprendizado, o comportamento e o magistério. A medicina à beira dos leitos e o ensino foram preocupações constantes em toda a sua existência.

Como conclusão, o seu escolhido e conhecido epitáfio agora exposto no idioma original, I taught medical students in the wards. Ele é expressivo, mas exterioriza apenas grande parcela de uma atuação que também foi grande em outros setores médicos, universitários e sociais.

Em síntese, uma vida que caracterizou-se pelo que nossa profissão mais exige de competência, de responsabilidade, de dignidade e de amparo.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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