O Poeta Petrarca e os Médicos - Uma Crítica Mordaz
As informações atuais sobre a Idade Média vêm confirmando que, em Ciência, não ocorreram apenas estagnação e esterilidade, mas também elogiável interesse pela categoria dos trabalhos, pela amplitude nas investigações e pela criação de instituições de ensino. As tradições da Escola de Salerno já estimulavam, no início do século XIV, a constituição de associações ou sociedades dedicadas ao desenvolvimento das ciências com a participação de leigos, e não apenas de religiosos. E também com regulamentos disciplinadores das atividades, então reservadas somente aos que realizassem estudos prévios. Contemporaneamente manifestava-se interesse quase generalizado pela criação de Universidades, como se cada cidade desejasse a sua.
A medicina desenvolveu-se também, sendo nítidos os avanços na técnica cirúrgica, com utilização de instrumentos mais adequados e com maior conhecimento da anatomia humana pela generalização das necrópsias.
A atenção aos enfermos ocorria, entretanto, em condições desiguais, em ambientes inseguros e disputados, não apenas pela atuação de "amadores" como pelas atividades dos "profissionais".
Os médicos viviam situações curiosas. De um lado, real bem-estar econômico e, de outro, persistente e maldosa rivalidade, favorecendo ocorrências que se tornavam objeto de críticas e de sátiras por parte da comunidade. E estas eram exacerbadas pela linguagem prolixa, redundante e capciosa nas discussões médicas, distante de um mínimo de precisão, de objetividade e de lógica. É evidente que essas manifestações ridículas nasciam da ausência de dados no manuseio dos doentes: a reduzida competência no exame físico e a precariedade das medidas terapêuticas, baseadas apenas em informações ou em empirismo inexpressivo.
As condições do momento estimulavam então, o espírito crítico dos literatos sob a forma de ataques diretos ou de fabulações. E ele foi muito acentuado na Itália. Como acentuou Castiglioni, em sua História da Medicina "os novelistas do século XIV manifestaram-se com freqüência sobre os médicos, descrevendo suas vestes e relatando anedotas sobre seu comportamento".
As próprias esposas ultrapassavam, com seu luxo, situações não permitidas a outras mulheres.
Nesta coluna analisarei as manifestações acerbas de um grande poeta italiano. Mesmo sem exteriorizarem uma visão geral da época expressam, sem dúvida, pontos de vista não raras em pessoas capacitadas a opinar.
O POETA ¾ Francesco di Petracco (1304-1374), conhecido como PETRARCA, foi, como é sabido, o maior lírico da Itália e um dos maiores dentre todos, de todos os tempos, e de todos os países. Intelectual em seus mais amplos limites, grande humanista, bibliófilo, viajante e patriota.
Promoveu traduções de obras antigas, preservação de documentos e coleções de livros de interesse. Seus textos patrióticos, sempre nobres e coerentes podem ser exemplificados pela eloqüência contra os tiranos de Verona.
Não cabe, nestas páginas, qualquer análise sobre a culminância de sua obra literária e apenas recordo seus trabalhos (Canzonieri), reunidos como Le Rime e como Trionfi, parte dos quais dedicada à sempre amada Laura, cuja identidade é ainda discutida. Nos sonetos adquiriu tal categoria que eles têm sido considerados como gênero pessoal.
Em síntese, um dos fundadores do Humanismo e o iniciador da mentalidade da Renascença na Itália. Homem credenciado não somente por sua alta categoria poética como por esclarecida visão dos aspectos contemporâneos. Seu falecimento manteve coerência com seu passado. Vivendo na aldeia de Arqua (N.E. da Itália), em busca de tranqüilidade e de liberdade espiritual, foi encontrado morto em sua residência com a cabeça entre livros.
Estes dados, algo minuciosos, são aqui expostos para compreensão da expressividade de suas críticas aos médicos e à medicina.
A CRÍTICA MORDAZ ¾ O poeta foi persistente e impiedoso em suas manifestações. Até certo ponto justo, dadas as ocorrências já mencionadas. Por outra, certamente injusto em suas generalizações, dada a quase certa personalidade de alguns médicos, cuidadosos e devotados que forneciam amparo aos enfermos, em suas tentativas terapêuticas, mesmo limitadas e ineficazes. E não podemos esquecer que ele viveu a imensa tragédia da grande epidemia da peste bubônica, a cognominada Morte Negra, que devastou a Europa e a Ásia. E contra a qual seriam inúteis quaisquer medidas terapêuticas.
Duas de suas manifestações críticas podem atuar como exemplos e relacionam-se a condições totalmente diversas.
A primeira está presente em sua carta ao Papa Clemente VI então enfermo e assistido por Guy de Chauliac, o mais famoso cirurgião da Idade Média, em associação com outros médicos. A segunda encontra-se em missivas dirigidas ao amigo Giovanni Boccaccio, também humanista e culto escritor; historiador do surto inicial da peste e atento ao papel básico do contágio.
Na carta ao Papa inicia uma advertência, "seu leito está cercado por doutores e isto naturalmente, me enche de medo". Lembra as suas opiniões, sempre em conflitos, e que "aquele que nada tem a dizer sofre o vexame de claudicar atrás dos outros". Cita ainda Plínio ao mencionar que "para manterem seus nomes por si próprios, através de qualquer novidade, traficam com nossas vidas". Os médicos aprendem seus misteres às expensas dos enfermos e "apenas eles possuem o direito de matar com impunidade". Aconselha, então, ao Papa que considere o conjunto dos médicos como "um exército de inimigos". E finaliza o texto observando que eles procuram argumentos fora da profissão, assim na poesia e na retórica, "pensando não em curar mas em convencer" .
Contrariando seu pedido o Papa mostrou a carta a Chauliac fornecendo novos motivos para disputas acirradas.
Em carta a Boccaccio ridiculariza as roupas "indecentes" dos médicos, nas quais estavam presentes "a púrpura e outras cores, enfeites de ouro e ancis cintilantes".
Em outra missiva crítica a afirmação do amigo que iniformava sobre a doença anterior e que agora sentia-se bem "graças a Deus e a seus médicos", opinando sobre o "erro vulgar presente em sua alta inteligência" , pois, na verdade, fora "Deus e sua boa constituição que fizeram tudo", e não os médicos", "ricos em banalidades e pobres em medicamentos". Em certo momento Boccaccio não chamara médico e então não ocorria surpresa porque "nada melhor à saúde que a ausência de um médico". E afirma, de novo, que "os que professam auxiliar a natureza, freqüentemente atuam, de fato, contra ela e lutam ao mesmo lado da enfermidade".
E, ainda, outra sátira sobre um doutor em conversa pessoal. Interrogado porque utilizava-se de alimentos que proibiam aos outros, respondera placidamente e sem hesitação: "Se a vida de um médico fosse consistente e com suas opiniões ou se estas o fossem com sua vida, ele sofreria na saúde ou na bolsa de dinheiro". E fala de outras relações pessoais: conhece "quatro médicos amigos que são homens cultos e educados, que conversam bem, argumentam com precisão, expressam-se com veemência ou com doce persuasão, ou seja, elas matam tranqüilamente com as mais convincentes explanações". E é o dogmático no fim da carta: "Já ordenei a meus subordinados que se algo de sério acontecer comigo, nenhuma atividade desses senhores será realizada sobre o meu corpo; será permitida a ação da natureza ou, antes, de Deus que me criou e colocará fim `minha vida, que não pode ser ultrapassada".
Todas as situações aqui expostas compõem o mapa da situação social da Medicina na véspera da Renascença; com reais deficiências, em parte dependentes do comportamento dos médicos. Nossa profissão, talvez mais que outras, viveu fases tristes, originadas não apenas pelo medíocre estado dos conhecimentos especializados, mas também pelas limitações morais do próprio ser humano.
A sua tremenda evolução através dos séculos evidenciou, entretanto, que, sem recuos e sem complacências, ela soube avançar em suas atividades, repelindo (como ainda faz) a ignorância, a improvisação, a charlatanice, a impostura. E adquiriu, assim, a sua intrínseca dignidade.
Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt