Duas Mestras Da Cardiologia Moderna

Nas décadas iniciais do século passado as anomalias congênitas do coração e dos grandes vasos da base eram apenas mencionadas de forma superficial nos livros de cardiologia clinica e mesmo nos de anatomia patológica. A precariedade dos conhecimentos reduzia o interesse dos leitores. O diagnóstico das variedades era, em geral, incompleto ou apenas suspeitado e quaisquer medidas terapêuticas estavam além do poder dos médicos.

As próprias informações dos pioneiros nos séculos XVIII e XIX, com Senac, e Frank, na averiguação de lesões e de sintomas e com Rokitansky, Keith, Spitzer em estudos embriologicos não solicitavam comentários.

Essa ocorrência, evidentemente não universal, era freqüente em numerosos livros de referencia. Como exemplo basta recordar a grande obra de Castiglioni, em sua tradução inglesa (A History of Medicine, 1941) na qual não são estudadas as anomalias congênitas e nem mesmo o nome de Fallot esta presente. Em todo o texto há apenas breve menção a Henri Roger, como descritor da síndrome que leva o seu nome. E no clássico livro de Osler, The Principles and Practice of Medicine (1892), o trecho inicial sobre o tema acentua que as afecções "apresentam apenas limitado interesse porque, em grande numero de casos, a anomalia não é compatível com a vida e, em outros, nada pode ser feito para desfazer a alteração ou aliviar os sintomas" .

Nessa fase de duvidas, entretanto, duas mulheres destacaram-se por seus trabalhos pioneiros, diversos em suas naturezas, mas envolvendo problemas comuns. Foram elas a canadense Maude E. Abbott e a norte-americana Helen Brooke Taussig. A primeira com esclarecido estudo dos aspectos estruturais e a segunda com fecundo exercício de atividade clinica. Elas estão recordadas nesta coluna.

MAUDE ABBOTT (1869-1940) – Curadora do Mc Gill Museum, em 1898, quando de retorno de estudos por dois anos, em Viena. A observação de um enfermo com afecção cardíaca congênita fez nascer e crescer seu interesse pelas anomalias. Foi, então, estimulada por Osler, agora atraído pela originalidade e a qualidade de seu trabalho. E em 1905 recebeu convite para escrever capitulo sobre Cardiopatias Congênitas em seu novo volume do System of Modern Medicine.

A rica experiência ulterior promoveu a publicação de seu grande livro ATLAS OF CONGENITAL CARDIAC DISEASE, exposto "de forma não habitual". Ele foi republicado em datas sucessivas, sempre apoiado em mais numerosas observações: na edição original (1907) 412 casos, em 1915 com 631 deles, em 1927 com 850 e em 1936 com 1.000 observações.

Nessa obra, magistral, a autora estuda, com profundidade, todas as modalidades básicas das anomalias congênitas. Inicialmente expõe o desenvolvimento e a anatomia comparada do coração de repteis, peixes e anfíbios. Depois, o texto, com as anomalias observadas "estatisticamente" segundo o conselho de Osler. A publicação original recebeu a palavra do mestre como "a melhor obra escrita sobre o assunto, em inglês e, possivelmente, em qualquer linguagem". Observa-se, pois, significativa mudança, no conceito restritivo do grande clínico. E ate hoje admiramos seu conteúdo e recebemos suas lições.

A edição de 1936 abrange 25 pranchas, nas quais estão presentes em classificação clinica clássica, os casos sem cianose, com cianose tardia e com cianose permanente. As anomalias cardíacas estão expostas em fotografias de peças anatômicas e assim também o fenótipo de certos enfermos.

Em esquemas e desenhos são apresentados dados clínicos (sopros), radiológicos e, eventualmente, eletrocardiográficos. Por outra, comentários elucidativos ressaltam aspectos peculiares e estabelecem correlações. Ao fim do texto, comparece uma grande e minuciosa tabela com informações valiosas sobre relações de aspectos clínicos com achados necroscópicos, sobre a freqüência relativa das anomalias e sobre eventuais causas de morte.

Essa obra acumula, sem duvida, um conjunto de ensinamentos que preencheria uma pequena biblioteca sobre o tema. Promoveu uma fase definitiva na compreensão das cardiopatias congênitas.

HELEN BROOKE TAUSSIG (1898-1986) – Professora-associada de Pediatria na John’s Hoopkins University School of Medicine e Diretora da Children’s Cardiac Clinic, na Harriet Lane Home for Invalid Children, do Hospital da Universidade (em 1947).

Suas expressivas atividades nesta ultima Instituição provocaram e desenvolveram fecundo interesse pelas anomalias congênitas do coração, particularmente pelas possibilidades de diagnósticos satisfatórios ainda em vida. Em seu caminho, todavia enfrentou restrições e recusas. Curiosamente, em 1922, fora advertida pelo presidente da Harvard sobre as reduzidas possibilidades de ser aceita como estudante de medicina por sua condição de mulher.

Desde jovem apresentava hipoacusia algo limitadora. Em seus anos de trabalho utilizou-se, entretanto, da radioscopia e do exame radiológico do coração, em observações numerosas, ricas em atenção e em raciocínio. E os dados obtidos, sempre que possível, eram comparados aos de necrópsias, tendo realizado pessoalmente centenas de dissecções de corações anômalos. Conseguiu, assim, reconhecer e compreender a estrutura anormal de qualquer malformação congênita. Tornou-se autoridade e mestra, oferecendo possibilidades diagnosticas ao alcance de clínicos não especializados.

Ressaltou, ainda, a eventual associação de anomalias e também certos aspectos básicos das perturbações hemodinâmicas em suas repercurssões sobre a circulação fetal.

A leitura de seu livro CONGENITAL MALFORMATIONS OF THE HEART (1947) sempre me impressionou pela profundidade das analises, pelo volume de informações, pela clareza do raciocínio, pela expressividade dos esquemas. Os dados clínicos são avaliados atentamente inclusive em suas possíveis repercussões sobre o estado geral orgânico. Nova edição, em dois volumes, foi publicada em 1960, com as mesmas características.

Seu campo de atividades não cessou de crescer, em assistência continua e eficiente a crianças limitadas por varias afecções, sendo constante seu carinho e segura sua compreensão perante condições gerais, físicas e emocionais. E atuou, ainda, em setor algo confuso na época, o da ação de determinados agentes medicamentosos de uso materno sobre o organismo fetal, como, por exemplo, os trágicos efeitos da talidomida.

Completando suas atividades clínicas ocorreu a grande contribuição ao tratamento cirúrgico, expressa na conhecida operação de Blalock-Taussig. Como é usual em qualquer setor científico, sua real participação nesse ato foi, e ainda tem sido, julgada diversamente por clínicos e cirurgiões, em avaliações que culminaram até em controvérsias. Não é meu intuito neste momento, analisar ocorrências pessoais e, assim, certo eventual e discutido afastamento ulterior entre os dois criadores da intervenção. Não existem dúvidas sobre a alta categoria profissional de Alfred Blalock como cirurgião especializado e quase certamente como iniciador de anastomoses entre as artérias subclávia e pulmonar em animais de laboratório.

A situação, entretanto, não reduz o significativo papel de Taussig, no momento e em fases ulteriores. Deve ser lembrada sua proposta ao cirurgião Robert Gross, pioneiro na oclusão de canal arterial permanente, sobre a criação de um ducto artificial para as "crianças azuis". Obteve desinteresse, como resposta, dadas as atividades do operador em outro setor.

No prefácio de seu livro, já mencionado, essa atitude encontra-se ressaltada por Edwards Park, professor de Pediatria no John’s Hopkins Hospital, que informa ter ouvido várias vezes a insistência da médica a Blalock para desenvolvimento de intervenção cirúrgica favorecedora de fluxo sangüíneo adequado aos pulmões. Ato operatório que definia como "cirurgia compensadora". Todos esses acontecimentos depõem por seu interesse e por sua posição.

Por outra, foi acusada mais tarde (1948-49) de não recomendar a intervenção a pacientes necessitados. Critica estranha dado o depoimento anterior de autoridade medica e universitária.

Competente lutadora, manteve-se ativa por mais de duas décadas após sua aposentadoria aos 65 anos. Como afirmou a Profa. Charlotte Ferencz, de Baltimore, em análise de seu envelhecimento, enfrentou inveja, criadora de fases amargas, mas viveu mais de uma década na "golden old age" solicitada, honrada e admirada.

Em verdade, tornou-se uma legenda, carinhosamente assistida pelos filhos de seus pacientes, por seus auxiliares e por assistentes de seus assistentes, reconhecidos por ela como "netos". Faleceu em 21 de maio de 1986, em acidente de carro, três dias antes de completar 88 anos.

Em um mundo que ainda aceita restrições à ciência feminina e com não raras reservas às suas merecidas posições é gratificante testemunhar as ocorrências mencionadas. Na coluna de hoje trazemos nosso reconhecimento e nossa homenagem a duas mulheres que enriqueceram a medicina como pesquisadoras, como orientadoras e, mesmo, como fontes de amparo.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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