Resistência à Verdade – Os Detratores de Harvey
A História da Ciência nos informa sobre uma ocorrência que hoje parece estranha, mas não incompreensível: a permanência, em séculos passados, de conceitos falsos durante longos períodos de tempo, mesmo em ambientes de elite intelectual. Atualmente nosso pensamento e nosso trabalho desenvolvem-se sob o reinado da ciência experimental e do espírito crítico, não ocorrendo a aceitação de mensagens apenas credenciadas pelo renome do proponente. Mas esta foi norma no passado.
Na época da publicação da imortal obra de William Harvey, EXERCITATIO ANATOMICA DE MOTU CORDIS ET SANGUINIS IN ANIMALIBUS (1628), a medicina ainda permanecia sob a tutela das concepções de Galeno, o grande médico grego de Pérgamo, que viveu no início da Era Cristã. Uma poderosa influência que se exercia por cerca de quatorze séculos, apesar de erros grosseiros em anatomia e fisiologia do aparelho cardiovascular. Basta apenas lembrar sua idéia da formação do sangue no fígado por elaboração de alimentos.
Em realidade, diversos autores já haviam divergido dessas opiniões. Conhece-se, mesmo, a significativa concepção do árabe (Damasco) Ibn An-Nafis, no século XIII, sobre aspectos mais corretos da pequena circulação, em comentário anatômico do "Canon"de Avicena. As informações são dignas, apesar de caracteres pouco científicos do trabalho, então interpretado sob a influência de espíritos vitais. As críticas fundamentais partiram de precursores de Harvey, no século XVI, assim André Vesalio, o mártir Miguel Serveto, Roaldo Colombo, André Cesalpino, que falaram com a autoridade de observadores competentes. Mas foi o enorme trabalho de Harvey que trouxe a verdade quase integral sobre a circulação do sangue: a sua obra, clara e lógica, solidamente alicerçada em observações objetivas e construída com análise precisa dos processos fisiológicos. Pôde assim, fornecer as reais características do funcionamento cardiovascular e, então, demolir as errôneas concepções de Galeno.
Os aspectos básicos de seu livro são conhecidos. A obra é modesta, pequeno volume de 72 páginas, com texto em latim, impresso com poucos cuidados gráficos. Representa, entretanto, cerca de vinte anos de trabalho.
Em grande síntese podemos recordar seis dados fundamentais da doutrina: a) existência de peculiaridades anatômicas no coração, assim a de pequenos músculos, como "linguasinhas carnosas" que predominam nas cavidades ventriculares; b) presença de movimento circular do sangue, com fluxo centrífugo nas artérias e centrípeto nas veias; c) características das contrações de aurículas e ventrículos, com a fase ativa inicial da sístole auricular, particularmente à direita, sendo a câmara a última a morrer; d) ausência de "poros" permitindo a passagem de sangue do ventrículo direito ao esquerdo; e) modalidades anatomo funcionais das artérias e veias, sendo que aquelas enchem-se e então distendem-se como odres e não se distendem e então se enchem como foles, sendo o mecanismo básico a propulsão do sangue pela contração dos ventrículos, e f) como ocorrência do conjunto de fenômenos, a existência de um único movimento circulatório, contínuo, integrado em círculo e não em sistemas independentes. Apenas não reconheceu a circulação capilar, que seria esclarecida por Malpighi, em 1661, quatro anos após a morte de Harvey. E forneceu dados algo confusos sobre a significação dos gases respiratórios.
O texto exibe a consciência do pesquisador sobre os méritos da obra, tendo procurado a verdade "não em livros ou em idéias alheias, mas em autópsias". E ressalta as grandes dificuldades enfrentadas.
Apesar do trabalho insano e inteligente, a recepção à verdade de seu módulo não foi tranquila. E, assim, atingimos o ponto básico de nosso artigo.
Em primeiro lugar, devemos acentuar que, ao contrário do que eventualmente afirmado, o autor distinguiu-se pelo reconhecimento dos precursores, em palavras sinceras e afetuosas.
No capítulo VII menciona Colombo como "douto anatomista"(peritissimo, doctissimoque Anatomico) e, ainda Galeno, "ser divino, pai dos médicos" (viri divini patris Medicorum). E no capítulo XIII saúda seu mestre Fabrício D’Acquapendente, o primeiro a descrever as válvulas membranosas das veias, como "perito anatomista e venerável ancião" (peritissimus Anatomicus & venerabilis senex).
Está, entretanto, consciente do ambiente em que vive. Perante a grande novidade que revelou, adverte que "teme o ciúme malévolo de alguns e também a inimizade de todos". Com grande lucidez reconhece que "o hábito, a impregnação de um dogma profundamente enraizado adquire o valor de segunda natureza" e, ainda, que "o sentimento de veneração pela antigüidade leva quase todos a considerar qualquer novidade como inexistente".
E seus temores se confirmaram. Apesar de todos os escrúpulos, enfrentou barreiras rígidas, irreversíveis, teimosas e ofensivas, fundamentadas na onipresença e na onisciência de Galeno que ainda imobilizavam o pensamento médico.
James Primrose, da Escócia, escreveu (em apenas dias? ), em Londres, um livro de ataque.
A própria Faculdade de Paris foi reduto dessa atitude. Como acentuou um dos maiores cardiologistas franceses de época recente, o prof. Charles Laubry, não pode ser esquecido que ela caracterizou-se por ostracismo obstinado e pela resistência unânime de seus professores à aceitação de uma inovação quimérica. E não havia apenas patriotismo nesse comportamento.
Dentre vários oponentes dois devem ser destacados pelo prestígio. O mais culto deles, Jean Riolan, chegou a admitir que se as dissecções de Harvey não concordavam com as opiniões de Galeno, seria melhor aceitar certas modificações de natureza através dos séculos que erro do médico grego. Outro, Guy Patin, mais jovem, mais faceto e mais desrespeitoso caracterizou a nova doutrina como "paradoxal, inútil à medicina, falsa, impossível, ininteligível, absurda e nociva à vida do homem" (seg. Darenberg, 1865).
Riolan recebeu resposta de Harvey em duas comunicações esclarecedoras, sob a denominação de De Circulatione Sanguinis (1649), mas Patin foi ignorado.
Harvey sofreu ainda insulto pessoal, apelidado de Circulator, termo latino que significa impostor ou farsante.
Felizmente, em nome do que consideramos "ciência", vozes autorizadas em diferentes países, ergueram-se em cumprimentos e elogios ao trabalho pioneiro; dentre elas a do grande Descartes, mesmo sem o reconhecimento integral do mecanismo proposto.
As discussões, entretanto, foram persistentes, ocupando grande parte do século XVII.
Não foi fácil apagar a braza que ainda fumegava. Apesar da evolução em acontecimentos sociais e no estado espiritual, este século caracterizou-se pelo individualismo em vários setores de atividades, com reais oscilações no acolhimento das coletividades. Para que a doutrina fosse ensinada na França tornou-se necessária ordem de Luiz XIV e criação de uma cátedra no Jardin du Roi, ocupada por Pierre Dionis, médico da casa real. Isto em 1673, portanto, 45 anos após a publicação de Harvey.
Com o papel depurador do tempo passou a obra de Harvey a representar o que realmente significa: fator determinante de uma revolução nos conceitos dos processos biológicos, com o estabelecimento judicioso das relações básicas anatomo-fisiológicas (anatomia animata).
Trouxe para os clínicos a presença da fisiologia, mas apenas aceitável quando anatomicamente possível.
Não apenas afastou a monotonia errônea, demorada e subserviente , que impedia o progresso dos conhecimentos. Atuou como exemplo: ponto de partida para outras conquistas no atribulado percurso da ciência médica.
A reverência de séculos ainda vive nos cardiologistas.
Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt