Fraudes em Ciência

A ciência como qualquer campo de atividade, requer trabalhos fundamentados na seriedade dos dados manipulados, mas a exigência nessa área do conhecimento cresce por suas repercussões, múltiplas e fecundas, que podem esclarecer ocorrências em todo o complexo humano, do passado ao presente e deste ao futuro. A experiência de décadas nos mostra, contudo, que pode haver discordância entre o que ela é e o que deveria ser por diferentes motivos claudica em seus alicerces e em suas manifestações.

Entre as ocorrências mais lastimáveis encontra-se a fraude em pesquisas fundamentais, verdadeira prostituição da mente que interroga.

A finalidade desta coluna é a de fornecer alguns exemplos ligados a atividades médicas. Acredito, entretanto, que será útil e mesmo atraente a rápida menção preliminar de fraudes observadas em outros territórios científicos. Não apenas pela curiosa natureza dos desvios, como às vezes pelas dúvidas sobre as causas de sua presença. Em certas ocasiões não se encontram motivos para as anormalidades do comportamento, e algumas destas serão agora analisadas

Uma distinção arbitrária, mas baseada em aspectos peculiares, permite que consideremos três tipos de fraudes: as até hoje inexplicáveis, as relacionadas a situações políticas e as dependentes de interesses pessoais em pesquisas médicas.

ATITUDES INEXPLICÁVEIS – Dentre vários embustes, existem pelo menos três que merecem um comentário, seja pela aparente categoria das descobertas, seja pela real categoria das descobertas, seja pela real categoria dos autores. O primeiro caso é o do pretenso achado de homem primitivo fóssil, em Piltdown (Inglaterra), em 1905. Um advogado, Dawson, interessado em arqueologia, lá encontrou uma calota craniana petrificada, antiqüísssima e já escurecida por óxido de ferro. Escavações ulteriores forneceram novas peças, inclusive um maxilar inferior. Elas permitiram a crença de restos de um antepassado do Homo sapiens, batizado como Eoanthropus dawsoni, ou seja, o homem da aurora de Dawson.

Através do tempo, entretanto, veio crescendo um ceticismo sobre a natureza dos achados. Durante mais de 40 anos ocorreram discussões com participação de cientistas de vários países. Finalmente, na década de 50, estudos realizados no Museu Britânico e, depois, na Universidade de Oxford permitiram a conclusão definitiva da presença de fraude. O crânio, realmente fóssil, pertencera a ser humano de existência relativamente recente e amplamente conhecida, com idade de cerca de 50 mil anos, e a mandíbula era de macaco moderno. Desta forma, o embuste foi esclarecido.

Restou, porém, uma série interrogação: qual o falsário e qual a finalidade de seu ato? O papel de Dawson tem sido discutido, embora ele seja mais reconhecido como culpado. É hipótese provável, mas dificilmente justificada perante pessoa sempre tida como honesta, com posição social satisfatória que deveria prever, para qualquer época, o reconhecimento da fraude. Além disso, ele nada recebeu em dinheiro e os ossos foram entregues ao Museu Britânico.

Outra ocorrência curiosa está ligada aos trabalhos de René Blondlot, professor da Faculdade de Ciências de Nancy (França). Em torno de 1904, dedicou-se a estudos sobre os raios X descobertos por Roentgen nove anos antes. E chegou a admitir a existência de outra radiação que batizou como "raios N" em homenagem à sua cidade.

Em diversas comunicações foram descritas propriedades estranhas desses raios que pareciam modificar aspectos básicos de física biológica. Eles se libertariam do corpo humano e de animais e acarretariam efeitos fisiológicos extraordinários: aumento das percepções sensoriais olfativas, ópticas, auditivas e gustativas e do brilho emitido por um corpo luminoso. Certas substâncias químicas achadas em tela apropriada reforçariam as radiações. E, ainda, o fenômeno era específico, relacionado à radiação do próprio órgão sobre o qual atuaria a substância. Assim, a digital reforçaria a radiação emitida pelo coração.

Os trabalhos foram realizados em associação com vários colaboradores, entre os quais verdadeiros homens de ciência, como A. Charpentier e J. Becquerel. A fraude foi revelada ulteriormente pelo professor Wood, da Universidade Johns Hopkins que, em carta cortês mas destruidora à revista Nature, revelou tudo o que observara em sessão especial à qual fora designado.

Diante desta ocorrência, permanece a interrogação sobre o papel de Blondlot, homem sensato e físico de boa categoria. Destinou todo o dinheiro de prêmio recebido à sua cidade, aposentou-se e desapareceu. E também sobre a ilusão coletiva de tantos e tão categorizados pesquisadores.

O terceiro exemplo de situação comparável encerrou-se de forma trágica, na Áustria, em 1926. O cientista foi Paul Kammerer, respeitado pelo trabalho e pela dedicação. Em pesquisas realizadas com sapos e salamandras, pretendeu comprovar a herança de caracteres adquiridos, de acordo com a antiga concepção lamarckista, a atitude que provocou críticas acervas e repetidas. Após período de resistência, concordou com a recepção de cientistas em seu laboratório e o resultado foi de embuste grosseiro, evidente à simples inspeção.

Após dias de depressão em ambiente hostil na Universidade de Viena, Kammerer suicidou-se. As mesmas dúvidas sobre a natureza de fraudes persistem perante um homem que, ao lado das credenciais científicas, possuía altas qualidades humanas.

INFLUÊNCIA POLÍTICA – Neste setor, o exemplo mais expressivo foi o do botânico T. D. Lysenko, na Rússia, em período de pouco mais de quatro anos (de 1948 a 1952), durante o qual defendeu princípios sobre genética que abalaram cientistas de todo o mundo. A ciência clássica era simplesmente rejeitada, sendo desprezadas as idéias de Mendel e mesmo negada a existência de genes.

As "descobertas" eram espantosas: transmissão de caracteres adquiridos, mudança de raças, transformações de espécies, influência do número de espermatozóides sobre o vigor de recém-nascidos e até a possibilidade de células oriundas de cristais. Essas opiniões, saudadas como frutos admiráveis do governo comunista, receberam apoio de Stalin. Foram aclamadas pelo fanatismo dos arautos e provocaram constrangimento nos reais cientistas do próprio país, alguns dos quais perseguidos e afastados.

A evolução dos acontecimentos trouxe, como ocorrência esperada, o descrédito total à escola de Lysenko e a perda do auxílio oficial, além da queda final do pretenso descobridor e de seus colaboradores.

TRABALHOS MÉDICOS Ocorrências recentes e tristes deixaram suas marcas em instituições categorizadas e, dentre elas, farei síntese de algumas em atividade.

A primeira refere-se aos trabalhos fraudulentos do dr. J.R.D. iniciados em 1969, ainda em período escolar e mantidos por cerca de 12 anos. Aparentemente uma carreira brilhante, com residência e depois estágio no setor de cardiologia na Emory University, em Atlanta, e no laboratório de pesquisas do Brigham and Women’s Hospital, filiado a Harvard, em Boston. Em seu estágio na Emory publicou oito trabalhos e fez 32 comunicações; em Boston, nove artigos e 21 comunicações. Algumas das pesquisas eram aparentemente significativas, como a sobre "antígenos leucocitários na cardiopatia hipertrófica" e outra sobre "diminuição dos níveis de taurina no miocárdio e a hipertaurinúria em portadores de prolapso mitral" . Dois trabalhos foram publicados no New England J. Medicine , em 1979 e 1981. E, outros, em revistas categorizadas com revisores credenciados.

As fraudes só foram descobertas em Harvard após cerca de dois anos de atividade e essa verificação alarmou os cientistas de Atlanta. Comprovou-se uma fraude em atitude que permanecera oculta durante longo período de trabalho.

Em triste conclusão, o autor dirigiu carta constrangedora ao New England Journal of Medicine (9 de junho de 1983), retratando-se dos atos e reconhecendo suas inaccuracies.

Uma ocorrência que acentuou a gravidade da situação foi a co-autoria de membros categorizados do meio universitário. E no mesmo exemplar da revista mencionada (contendo a carta de J.R.D.) estavam presentes duas retratações de professores, avocando desconhecimento dos fatos por desconhecimento dos fatos por provável participação apenas nominal. O editor do jornal (A . Relman) não os isentou da culpa, ou seja, da inadmissível omissão de responsabilidade. Em comentário ulterior, o editor J. A. Kastor, do International Journal of Cardiology, reprovou com energia a prática habitual da inflação de autores e co-autores.

Outro impostor foi R.S., da Escola de Medicina de San Diego (Universidade da Califórnia). Em dezembro de 1985, o deão dessa faculdade enviou carta ao Journal of the American College Cardiology solicitando a retirada de dois artigos do médico, acompanhada por outra do advogado do autor ressaltando "a não realidade das conclusões". Segundo comunicado do dr. Peters, professor de Cirurgia da Universidade da Califórnia, três artigos fraudulentos tinham sido publicados na revista Chest , versando sobre "aspectos do volume do ventrículo esquerdo".

A visão crítica sobre a inaceitável inflação de colaboradores aplica-se diretamente a outro escândalo recente (1975), o de W.S. no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, em grupo supervisionado pelo dr. R.G.E. – os dados são impressionantes pela ausência de autocrítica. Assim, em período de cinco anos, o supervisor publicara 342 artigos (média de 68 por ano!), sendo autor principal apenas em 16 deles e contando no total com 136 co-autores (informação de P. Woolf, do Departamento de Sociologia da Universidade de Princeton).

Como se compreende, na patogenia desses desvios de conduta encontra-se irresponsável busca de prestígio que compromete a dignidade de todos. Pode transformar-se em norma para os jovens e reduz a esperada ascendência de certos colaboradores competentes. Acredito, entretanto, que a complexidade da medicina atual vem agindo como fator de segurança, perante a vigilância de outros grupos interessados em problema comum. A nossa ciência afastou-se do magister dixit e requer provas e não afirmações.

Devemos, então, confiar em futuro mais austero, no qual a responsabilidade seja apanágio de todos pela óbvia recusa de embustes, mas amparada também pela influência das reais conquistas sobre nós e nosso mundo.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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