Prevenção de Recorrências da Febre Reumática

O tema de hoje está relacionado a uma situação de atividade clínica e, então, algo distante de nossos comentários habituais. A ocorrência explica-se por minha preocupação, de anos, com certa displicência que venho observando no desempenho de atitude fundamental em terapêutica preventiva. Não é a primeira vez que discuto o assunto, mas ele permanece em meu espírito. E tenho, mesmo, sido solicitado por colegas para revisão de pormenores.

Dois aspectos devem ser inicialmente mencionados. De um lado, a habitual repercussão dos surtos recorrentes da febre reumática (FR) sobre o estado cardíaco do momento, exacerbando anomalias valvares já presentes ou acarretando lesões iniciais. De outro, a comprovada eficácia das medidas preventivas. A observação universal revela que a incidência de novas crises reduz-se acentuadamente , assim a reinfecção estreptocócica a cerca de 3% dos casos e a recorrência da FR a cerca de 1%. Resultados, portanto, muito mais expressivos que os obtidos na prevenção de outros estados mórbidos, como as coronariopatias, a hipertensão arterial, as disritimias.

A medicação profilática permanece realizada essencialmente pela penicilina e esta não será utilizada apenas em indivíduos com reações peculiares que podem ser graves quando da aplicação intramuscular. Nestes casos a eritromicina (250mg duas vezes ao dia) será aconselhada e, mesmo, a sulfadiazina tem sido empregada. Esses medicamentos não serão analisados.

A taxa da penicilina no soro deve permanecer entre 0,015 e 0,030 U/ml, níveis modestos porque o objetivo não é a erradicação de germes, já obtida com a terapêutica da fase aguda da doença, mas apenas a recorrência da infecção estreptocócica. A droga pode ser administrada por via intramuscular ou oral. No primeiro caso a escolha é a da penicilina benzatina nas doses de 600.000 U para crianças até os 12 anos (cerca de 30kg) e de 1,200.000 U para adultos. Por via oral, de preferência a fenoximetil penicilina (penicilina V) nas doses de 200.000 U a 250.000 U duas vezes ao dia para crianças e de 250.000 U também repetida para adultos. A droga é relativamente resistente à acidez do meio gástrico.

Essas normas estão consolidadas e devem ser mantidas por longo tempo. A sua aplicação, constante através dos anos, defronta-se, entretanto, com situações ou problemas que podem acarretar interrupções temporárias ou permanentes, mas sempre nocivas. E que não devem ser permitidas. Nesta apresentação farei uma análise das ocorrências mais comuns e dos pormenores de sua assistência.

A) A administração parenteral da penicilina vem sendo discutida quanto ao intervalo das injeções . Em quase todo o mundo a droga é utilizada de quatro em quatro semanas e, nesse comportamento, a influência norte-americana tem sido fundamental. Apenas em países menos desenvolvidos foram aceitos intervalos de três semanas.

Nossa experiência, entretanto, já evidenciou, há anos, a não rara recorrência da FR ao fim dos períodos mensais e essa possibilidade já foi reconhecida em outros países. Utilizamos então, administrações quinzenais pelo menos nos dois anos iniciais após o surto, agudo. Em verificação antiga (1983) comprovamos a queda relativamente precoce das taxas de penicilina no soro após o uso da penicilina (1.200.000 U) por via muscular. Em 13 voluntários, sadios, as concentrações necessárias ( > 0,030 U/ml) ocorreram em todos os indivíduos ao fim da primeira semana, mas em 77% deles após 14 dias, em 70% após 21 dias e, em apenas 15% (dois casos) ao término da quarta semana. Estes dados confirmam as vantagens de nosso uso quinzenal.

B) Outra dúvida refere-se à eventual seleção das drogas, se de uso oral ou parenteral. Não há dúvida que esta possui atividade mais poderosa e é a indicada na maioria dos casos, particularmente para enfermos com lesões valvulares residuais. A utilização por via oral é aconselhada nas formas iniciais mais brandas, com pequena ou nula cardiopatia final ou em eventualidades de reações significativas à droga injetada.

C) Uma ocorrência de grande valor prático está relacionada ao período de manutenção do antibiótico. Como a susceptibilidade à FR persiste durante a vida, a norma ideal seria essa permanência das medidas. É evidente, entretanto, que razões óbvias dificultam essa orientação.

Uma atitude menos drástica, mas eficiente, é a da manutenção da terapêutica para crianças (> 12 anos) até os 18 anos e para adolescentes e adultos por período de cinco anos, que representa a fase de maior susceptibilidade às recorrências.

Apenas um determinadas situações, as medidas devem ser prolongadas, assim a) em presença de reinfecções específicas quando da suspensão das drogas, b) em pacientes que atuam em ambientes possivelmente contaminados, sejam médicos, enfermeiros ou funcionários de hospitais e c) em portadores de cardiopatia residual grave. A manutenção da terapêutica no primeiro grupo é óbvia: nos outros será avaliada em função do estado clínico e dos riscos enfrentados. A profilaxia deve ser exercida mesmo após intervenções cirúrgicas sobre as válvulas ou em sua substituição por prótese. Nesses casos a análise cuidadosa dos eventuais riscos orientará os clínicos.

Dada a não rara ocorrência de infecções estreptocócicas com manifestações pouco expressivas aconselho ainda a determinação dos títulos de antiestreptocilina 0 quatro vezes ao ano. Os seus desvios (> 320u, para indivíduos dos dois aos 17 anos, segundo a Dra. Marina Quaresma, 1996) exigirão a terapêutica erradicadora dos germes.

D) A situação de enfermos sem cardiopatia residual tem trazido dúvidas sobre a necessidade de medicação profilática. De fato, o reconhecido mimetismo dos surtos recorrentes permite a admissão de "febre reumática apenas articular " desde a manifestação inicial. A ocorrência é legítima, mas não universal e mesmo sua constância pode claudicar, com agressão valvar aparentemente ligada a quadro recorrente. Além disso, nem sempre a participação cardíaca é nítida na fase aguda da doença. Hoje as possibilidades de dúvidas ou de ignorância são raras perante as informações do ecocardiograma, mas ainda podem ocorrer.

No momento, portanto, aconselho a utilização de medidas preventivas em todos os reumáticos, sem exclusão dos casos aparente ou seguramente apenas articulares.

E) O absenteísmo, ou seja a irregularidade no uso ou a suspensão das drogas, é, sem dúvida, o maior responsável pelas falhas na profilaxia, particularmente quando da administração oral. A ocorrência, sempre inaceitável, pode ser compreendida, entretanto, perante indivíduos que parecerem sadios durante meses ou anos. E muitas vezes reagindo de forma intensa (dor local) à medicação por via parenteral.

As falhas ocorrem, naturalmente, em grupos de menor cultura. Não são raras, entretanto, mesmo em áreas sociais mais elevadas, onde infelizmente ocorrências fortuitas, porém atraentes, facilitam o abandono de atitudes rotineiras e monótonas. O uso de cartões de presença a serem assinados pelos médicos é, sem dúvida, útil em ambulatórios, mas não remove a incompreensão e a irresponsabilidade.

Essas ocorrências exigem o apelo à consciência dos pais ou mentores perante o risco das interrupções. Em particular quando de situações que as favorecem, sejam elas de origem familiar, pessoal ou social, como viagens, mudanças de residência e de colégios, presença de outras doenças, separação dos pais.

F) Uma atitude nem sempre lembrada é a da necessidade de medicação erradicadora dos germes, precedendo o tratamento preventivo desde que este apenas evita reinfecções. É o que se realiza habitualmente na assistência aos enfermos desde a fase aguda. Nos que não a obtiveram e, então, são observados apenas em períodos ulteriores, para profilaxia por via oral a terapêutica bactericida deve ser instituída, como atitude inicial, sob a forma do antibiótico por via parenteral (uma injeção) ou da penicilina V em doses maiores por dez dias consecutivos.

G) Os pacientes, devem ser afastados de ambientes contaminados ou suspeitos, sejam familiares, sejam coletividades fechadas, como creches, colégios, acampamentos, quartéis. Essa preocupação, evidentemente, é necessária nas fases iniciais da prevenção, podendo admitir-se, apenas como prática clínica, um período mais sensível de seis meses.

H) Em certas ocasiões, realmente pouco freqüentes, apesar das medidas adequadas, surgem reinfecções estreptocócicas e, mesmo, a recorrência de manifestações da FR. Nesses casos, deve ser instituído o tratamento da fase aguda, sempre que possível com a penicilina benzatina, em duas administrações com intervalos de cinco dias.

I) Em eventualidades de manipulações dentárias, particularmente de tipo cirúrgico, os pacientes sob profilaxia, e portadores de valvopatias devem receber tratamento acessório para prevenir a endocardite bacteriana, sob a forma indicada no momento. Os portadores de prótese valvar apresentam maior rsico.

J) A longa experiência universal vem comprovando a quase nula incidência de infecções por germes que se tornaram resistentes ao antibiótico. Em raros indivíduos foi observada essa ocorrência, em particular, o advento de endocardite pelo Str. viridans. A situação, entretanto, não apresenta características que permitam admití-la como barreira à terapêutica preventiva.

Todas essas medidas, em sua presença, em sua inteireza, em sua constância, não podem ser menosprezadas ou reduzidas. Elas integram um plano terapêutico que, já há décadas, ampliou e enriqueceu nosso campo de ação.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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