Atividade Científica — Síntese de Conceitos e de Caracteres

Apesar de presente em nossas cogitações habituais, a Ciência não é facilmente definida

Reconhecemos que Bacon acentuou o caráter básico da Ciência ao reafirmar o antigo preceito dos gregos de que "conhecer verdadeiramente é conhecer pelas causas". Ela pode ser admitida como um conjunto de conhecimentos dos fenômenos naturais então ordenados, correlacionados e interpretados. Distingue-se do conhecimento vulgar, que decorre apenas de observação rotineira de fatos, afastada de buscas de interpretação racional e de conexões possíveis.

Sabemos que essas características só foram atingidas em épocas relativamente recentes, mas acredito de interesse uma leve rememoração de ocorrências antigas. Como já acentuei em trabalho anterior, nas eras passadas vivia uma "ciência pragmática", mais impulsionada pelas exigências da vida diária do que pela busca fecunda do saber. Esta era forneceu, entretanto, conquistas expressivas e que ainda hoje nos surpreendem. Assim, a metalurgia dos povos da Mesopotâmia e da Ásia Menor, a arquitetura minóica, a agricultura e certas técnicas médicas dos egípcios e, em particular, a astronomia dos sumérios. De certa forma fizeram "ciência", porque observaram, racionaram, concluíram e, eventualmente experimentaram. Mas, na maioria das situações a finalidade era a obtenção do útil e do utilizável. Esta muito deveu à cultura de Creta, mas foi dos gregos que a ciência – lado do desenvolvimento particular da matemática – recebeu a oferta da possibilidade de uma representação mais ou menos sistemática do Universo e de seu conteúdo pela busca da explicação racional. Nessa fase atua o pensamento crítico, ocorre a visão global e manifesta-se o valor do pensador, apesar de limitações filosóficas e de certa fragilidade nas observações.

Em um grande salto no tempo atingimos a Idade Média tão criticada no passado e tão discutida e reavaliada no presente. Não podemos admitir a presença isolada de repetições monótonas ou de silêncio. Duas ocorrências contribuíram para o enriquecimento do pensamento científico: a criação de Universidades (Oxford, Montpellier, Paris e Bologna) e a influência da ciência árabe. Aquela estruturou campos de conhecimento e esta exibiu fecundidade que avançou em amplos limites. E, finalmente, a eclosão do Renascimento, com a conhecida ascensão de todas as manifestações científicas e artísticas. Com a presença de homens voltados à natureza e ao mundo e não à leitura do passado. Ele não necessita ser encarecido.

Para nós, médicos, apenas um exemplo curioso, o das atividades de quem foi charlatão e pesquisador. Refiro-me a Philippus Aureolus Theophrastus Bombast von Honhenheim, o famoso Paracelso, professor de medicina em Basiléia (1526), que repelia os textos tradicionais e exaltava a observação direta dos fenômenos naturais. Em 1527 queimou, em público, obras de antigos autores como protesto à servidão intelectual que promoviam. Impulsionou estudos de química e de propriedades medicamentosas de várias substâncias, podendo ser considerado o iniciador da química farmacêutica.

Em verdade, entretanto, a Ciência, como a aceitamos hoje só se ergueu mais tarde, no fim do século XVII e no decorrer do XVIII, com o advento da Ciência Experimental que mergulhou os homens nas águas profundas da natureza.

Caracteres do Pensamento Científico. O conhecimento vulgar é, em síntese, apenas observação e não procura relações entre os fenômenos. Caracteriza-se por conquistas essencialmente pragmáticas e mantém alto componente subjetivo, limitado a impressões repetidas.

O pensamento científico convoca o raciocínio para interpretar e relacionar. Há uma disciplina da atenção dirigida:

  1. à objetividade, para que teorias ou sistemas resultem de avaliação imparcial, independente de tendências ou pré-julgamentos
  2. à exatidão, para que se consiga a idéia adequada aos fatos
  3. à ordenação, para análise de eventuais variações do que foi observado
  4. aos pormenores para que não ocorra menosprezo de aspectos pouco evidentes

à homogeneidade das condições para possível reprodutividade e, então, valorizadas semelhanças ou discordâncias.

Nas próprias conquistas "ao acaso" está presente a sutil preparação mental, quase subconsciente, que orienta a direção do pesquisador. Na presença desse estado é que explicamos a descoberta da radioatividade natural por Becquarel, em 1896, a do mecanismo da transmissão do tifo por Nicolle, em 1909 e, com concessões, até a dos raios X por Roentgen em 1895 e a da penicilina por Fleming em nossa época.

Uma face significativa, entretanto, é a voltada para o reconhecimento dos limites da Ciência. A ausência de uma visão crítica poderia levar ao chamado "cienticismo" ou seja, à concepção deformada da Ciência como sistema amplo e concludente, capacitado à solução de todos os problemas e portanto como plataforma sobre a qual se manteria o bem-estar universal.

Essa utopia que viveu mesmo no início do século atual, morreu como morrem as inferências dogmáticas.

Objetivos da Atividade Científica. O objetivo fundamental da Ciência é o conhecimento da "verdade". Não discutirei nesta simples introdução a legitimidade dessa concepção do que é a "verdade" tão discutida sob os pontos de vista filosófico e normativo.

Uma concepção generalizada tem distinguido a ciência "pura" da ciência "aplicada". A primeira é desinteressada de outras implicações, livre de quaisquer interesses e independente. Apenas procura o saber e seria a Ciência de mais elevada categoria. A modalidade "aplicada" está relacionada a objetivos práticos mesmo que de valor.

Durante longo tempo permaneceu certo menosprezo pelas atividades utilitárias, com hierarquia secundária perante as características superiores da forma "pura’. Duas condições, entretanto, merecem consideração. Em primeiro lugar a aplicação não pode, como é evidente, manter-se nos estreitos limites de utilitarismo subalterno, sob os auspícios dominadores da indústria e do mercado. Por outra, não são raras as possibilidades de desaparecimento da distinção entre ambas por verificações em cadeia transformadoras da ciência pura em aplicada e vice-versa. Os exemplos não são raros mas um deles sempre me cativou. É a informação de Leon Brunschvicg, em seu tratado Les Etapes de la Philosophie mathématique (1929) de que a mais prática das invenções humanas, a telegrafia sem fio, teria origem remota nas concepções abstratas do matemático Cauchy (de 1820) a 1830). Não possuo conhecimento para opinar sobre a associação, mas o autor que informou foi modelo de erudição filosófica e matemática.

É evidente que são óbvias as recompensas da ciência aplicada, independente de limitações servis, sem a qual ainda viveríamos em cavernas e a medicina não existiria, como sendo o apoio que caracteriza. E, no momento, talvez mais do que outrora, exige-se a participação dos cientistas na dinâmica da vida social. Eles vêm sendo convocados como exemplos dos que raciocinam, relacionam, sabem o que concluir. Nesta permanência, deve viver também a persistência da cautela e da autocrítica porque há algo de preocupador nessa posição.

Como já acentuado por muitos, a ciência hoje burocratiza-se e industrializa-se. Os cientistas passam a depender de decisões de comunidades exteriores, em possibilidades de insegurança e, então, sob tentações indesejáveis ou inaceitáveis.

A velha afirmação de que a Ciência não é moral ou imoral, mas suas aplicações podem ser imorais, deve ser recebida com atenção, acatamento e respeito. Uma observação acaciana nos lembra que qualquer que seja o resultado da movimentação intelectual e social ele deverá ser sempre de apoio à sociedade, como atributo básico da própria consciência do investigador

A nossa Ciência Médica, pura ou aplicada, insere-se sob todos os aspectos nessa cruzada pelo Homem, em normas sempre vivas sob o manto da responsabilidade.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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