O "Aleijadinho" – Uma Grande Obra E Uma Grave Doença

Ao fim do século XVIII e início do XIX viveu em Minas Gerais um homem de nascimento em classe média que se manifestou como um dos maiores artistas da época. Ultrapassou o estilo habitual da escultura em pedra, expressando vida e sentimento. Atingido por moléstia deformante e mutiladora trabalhou com enorme esforço durante dezenas de anos. Foi ele o cognominado ALEIJADINHO, que evocamos como pessoa, como escultor e como doente.

O HOMEM Antonio Francisco Lisboa nasceu em 29 de agosto de 1738 (para alguns em 1730) na cidade de Vila Rica de Ouro Preto, então capital do Estado e faleceu em 18 de novembro de 1814. Filho de escrava negra e do conceituado construtor português, Manuel Francisco da Costa Lisboa.

Sua escolaridade tem sido discutida, após anos de indiferença e de desinteresse; mais modernamente reavaliada perante as características de sua obra. Duas condições devem ser lembradas: o amplo crescimento da cidade natal pelas descobertas de depósitos de ouro e de diamante e as importantes atividades do pai. Não foi, portanto, um ignorante, mas adolescente com algum estudo e com progressivo preparo técnico. Seu relacionamento com artesãos portugueses, contudo, deve ter sido superficial, mesmo com o nosso conhecimento sobre a atividade de alguns deles. De qualquer forma é excepcional sua grandeza artística desenvolvida em meio algo limitado, embora em fase evolutiva.

AS ESTÁTUAS DE PROFETAS O conjunto das estátuas em pedra-sabão de doze profetas bíblicos fronteiro ao Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, representa para mim o maior documento de sua capacidade. Os profetas apresentam-se em pé, com capuzes e vestimentas algo diferentes e seguram cartelas com inscrições latinas retiradas de seus livros.

Formam um cenário impressionante diante da igreja, já em destaque, no alto de pequena coluna.

Na frente encontram-se Isaías e Jeremias e logo atrás, Baruc e Ezequiel; em fila posterior Daniel e Oséias, no centro, e Jonas e Joel nas extremidades. Em corredores laterais; à direita, Amós e Abdias e à esquerda Naum e Habacuc.

Estive três vezes no local, nas duas últimas procurando na pedra algo da mente de cada profeta. E a forte impressão inicial transformou-se em profunda admiração pelo trabalho realizado em condições limitadoras que mencionamos adiante.

Os corpos, em suas relações corporais, anatômicas, apresentam-se muitas vezes desproporcionados e mesmo deformados (trabalho de auxiliares?), mas os rostos são impressionantes pela sensação de vida e pela espiritualidade que apresentam. Além disso, ocorrem características individuais que podemos admitir como peculiares às personalidades dos diferentes profetas. Há, portanto, nítida diferença em relação à estatuária da Renascença com sua alta classe, mas algo fria e inexpressiva. Como acentuou nosso colega, já falecido, Eugênio Mauro, não está presente a serenidade de Fra Angélico, mas "a angústia do pária".

Observamos o profundo olhar de Isaías, a angústia e a austeridade de Jeremias e de Ezequiel, a nobreza clássica de Daniel, a compaixão de Oséias, o tremendo espanto de Jonas, o equilíbrio de Joel, a serenidade de Amós, a graça de Abdias, a certeza de força, algo triste em Naum e viril em Habacuc e, até, a relativa inexpressividade de Baruc.

Não desejo discutir duas circunstâncias que têm sido mencionadas. De um lado, a sugerida parecença com estruturas presentes em Portugal, como a de Bom Jesus do Monte, em Praga, reconhecida como exemplo dos santuários setecentistas do norte desse país. De outro, a coonfiguração dos mantos que envolvem os profetas, com pormenores que sugerem certa "influência florentina". Esses aspectos foram analisados por Germain Bazin, conservador do Museu do Louvre, em seu livro sobre O Aleijadinho e a Escultura Barroca no Brasil, no qual invoca "o sacro monte" e o "balé dos profetas"em Congonhas do Campo. Essas duas aproximações, entretanto, devem ser aceitas com cautela e, mesmo, com reserva.

A DOENÇA O artista foi atingido por grave moléstia, provavelmente em torno de 1777. Não afecção mortal, mas progressiva, limitadora, deformante, mutiladora e responsável por enorme sofrimento físico e mental.

Os membros foram profundamente afetados, com atrofia, paresia e ulterior amputação dos dedos; comprometimento progressivo da movimentação, com curvatura dos braços e das mãos, então semi-paralisados. Ao mesmo tempo, perda dos artelhos, sendo obrigado a se locomover sobre os joelhos. O drama era acentuado por dores acentuadas.

O rosto também foi desfigurado, com perda de dentes, desvio da boca (provável paralisia facial), queda do lábio inferior e má posição do queixo. Em fase avançada era transportado por escravos e usava joelheiras de couro para se mover sobre os joelhos.

O escopro era introduzido entre os dedos por esses auxiliares, três dos quais permaneceram reconhecidos nominalmente até hoje e que executavam tarefas quase peculiares, transporte, auxílio manual, etc.

Compreende-se, então, a presença devastadora do sofrimento físico e sua tremenda influência sobre o estado mental e a atividade social. Fugia das coletividades, trabalhando isolado com os escravos. E, sentindo a repulsa nos circunstantes, tornou-se rude, agressivo, intolerante.

A natureza da afecção é objeto de hipóteses e de discussões. E as dúvidas não são estranhas, dadas as informações pouco expressivas e oriundas de leigos.

No início foi admitida a presença da então denominada "zamparina", de natureza infecciosa. O nome parece estar ligado à afecção da cantora veneziana Zamparini que atuou em Lisboa em 1770 e lhe foi atribuída por Rodrigo Bretas, seu primeiro biógrafo. Trata-se de entidade (?) duvidosa e foi logo afastada.

A primeira hipótese mais científica foi da lepra, justificada pelo estado físico, invocada sob formas diversas durante anos e, depois, algo desacreditada. Um forte argumento contrário (Prof. Geraldo Dutra de Moraes) foi o da ausência do nome do artista dentre os 19 leprosos de Vila Rica, segregados socialmente em maio de 1788 e que constituíam a totalidade dos doentes locais. A possibilidade, entretanto, é mantida por nosso colega, o Prof. Tancredo Furtado (Belo Horizonte, 1970) que invoca com sólidos argumentos, a lepra nervosa, de diagnóstico mais difícil e, mesmo, freqüentemente ignorada.

Ulteriormente, vários autores propuseram inúmeras doenças. Em síntese, apenas menciono algumas: moléstia de Raynaud, escorbuto, reumatismo deformante, sífilis, diabetes, siringomielia, bouba, amiloidose, encefalite letárgica, poliomelite, osteomalácia. Essa mera exposição já expõe a irrevelência de quase todas e a inutilidade de qualquer comentário.

Recentemente, duas afecções foram sugeridas com bases científicas: a angiite obliterante (moléstia de Buerger) e a porfiria.

A primeira, aceita pelo Prof. Alípio Corrêa Neto apresenta os conhecidos caracteres clínicos que a aproximam, pelo menos parcialmente, à doença do artista. Lembramos, apenas, a agressão a artérias e veias de pequeno e médio calibres, eventualmente separadas por vasos não lesados, a grave isquemia com possibilidade de amputação de membros. Há evolução longa e não é essencialmente letal. Dois aspectos devem ser analisados: a) a ausência de manifestações viscerais no artista não é argumento de peso, pois a situação é comum na arteriopatia; b) as alterações faciais, entretanto, distanciam essa possibilidade pelo menos como afecção isolada

Alguns dados sugerem hoje a presença da porfiria. Dentre eles, a descoberta de ossos avermelhados e a recordação de certas peculiaridades de seu trabalho, como a proteção contra o sol. Usava chapéu com abas largas e mantas de golas altas. Não é improvável, entretanto, apenas a proteção contra a comunidade. A presença dessa moléstia foi defendida por Paulo da Silva Lacaz, professor de Bioquímica na Faculdade Nacional de Medicina (RJ) e já falecido.

Na impossibilidade de opinião mais precisa, alguns colegas admitem a presença de uma associação de doenças, mesmo perante a atual expressividade da porfiria, então parte do conjunto proposto. É possibilidade muito atraente perante o generalizado desmoronamento corporal.

Em conclusão, desejo transmitir a minha grande admiração pelo artista, mutilado e sofredor, que soube personalizar os profetas nas estátuas de pedra-sabão.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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