A Trágica Auto-Experimentação De Carrión
A auto-experimentação não tem sido rara em medicina e vem sendo exercida em todos os tempos. Acolhida com críticas em algumas situações é recebida com deferência, respeito e gratidão na grande maioria dos casos. E pode ser fundamental em muitas ocasiões, no esclarecimento de ocorrências e na orientação de atitudes.
Em verdade, pouco significam as razões íntimas dos pesquisadores eventualmente se decorrentes da vaidade ou da busca de prestígio, desde que conduzidas com disciplinas e fornecedoras de dados importantes. É fácil reconhecer, entretanto, que quase todas nasceram da procura de fundamentos sólidos para nossa atividade, em preocupações lógicas e desejáveis. E foram conduzidas em expectativas de sofrimento e, mesmo, perante a possibilidade de morte. Dignificaram homens e instituições e exigem reconhecimento e gratidão de profissionais e de leigos, apesar de sua habitual ausência na mente dos próprios médicos.
Um dos exemplos mais significativos do sacrifício foi realizado no Peru por um jovem estudante de medicina, Daniel Alcides Carrión. Sua atitude impressionou-me desde quando na Faculdade estudei a disciplina de Moléstias Infecciosas e ainda conserva elevada posição apesar de certas restrições ulteriores que analisaremos mais adiante.
Circunstâncias fortuitas rememoram os acontecimentos em meu espírito e estimularam a presente exposição.
Ele iniciou seus estudos médicos em 1880, com pouco mais de vinte anos, e apesar de vários percalços, manteve seus propósitos. A Faculdade de Medicina foi fechada durante a guerra contra o Chile, quando da ocupação pelas tropas estrangeiras. Realizou, então, peregrinação por vários hospitais em estudos e trabalhos práticos até a reabertura dos cursos. Nesse período de cerca de quatro anos observou e enfrentou duas graves entidades mórbidas endêmicas em certas zonas do país: a "verruga peruana" e a "febre de Oroya".
A primeira, caracterizava-se por erupções vasculares múltiplas, nodulares e persistentes na pele e em mucosas, associadas a febre e a dores articulares acentuadas e limitadoras; podiam ser graves e acarretar a morte.
Alguns aspectos epidemiológicos sugeriam a presença de estado infeccioso mas dúvidas básicas ainda persistiam. Já era conhecida há séculos nos vales das cordilheiras peruanas, com possível presença mesmo no período da civilização incaica, dados alguns aspectos morfológicos semelhantes em cerâmicas de figuras humanas dessa época.
A febre de Oroya obteve seu nome por terrível agressão a trabalhadores da Estrada de Ferro de Oroya, nos Andes, em 1870. Acarretando elevada incidência de mortes apresentava-se, em clínica, com febre, câimbras abdominais, dores ósseas e articulares e anemia hemolítica em geral acentuada, de evolução destruidora em breves períodos de tempo.
Como futuro médico e patriota, Carrión interessou-se pelas afecções, acumulando observações clínicas durante quatro anos. Consciente da eventual dificuldade no diagnóstico da verruga em sus fases iniciais, antes do aparecimento da erupção, perante outras afecções febris como a malária. E, atraído também pela possível identidade de ambas, suspeitada por alguns médicos pelo comparecimento nas mesmas zonas e pelo eventual acréscimo paralelo na incidência.
Diante da situação optou Carrión por auto-inoculação de material mórbido, então realizada em 27 de agosto de 1885, no Hospital Dos de Mayo, sob a forma de transplante de verruga ainda pequena, colhida no supercílio direito de um menino de 14 anos. A operação enfrentou resistência de colegas e do próprio chefe do Serviço, o professor Leonardo Villar que, entretanto, permitiu a sua realização. Dada a dificuldade da auto-inoculação foi ela efetuada por um jovem médico, Evaristo Chávez, em presença de dois estudantes como testemunhas.
Dias após uma trágica situação iniciou-se. Em meados de setembro surgiu desconforto, sucedido de febre, cãimbras abdominais, dores ósseas e articulares, estado mórbido idêntico ao da febre de Oroya. Em seguida, a eclosão de doença devastadora, com anemia intensa e progressiva, icterícia, hematúria e oligúria, grande depauperamento orgânico. Observou-se acentuado sopro sistólico no tórax e nas carótidas de provável origem anêmica. A evolução, maligna, não permitiu resistência, vindo a falecer, exangüe, em 5 de outubro de 1885, após 39 dias de sofrimento. Com seu sacrifício evidenciara, então, a identidade das afecções.
Esta trágica ocorrência, entretanto, ainda não terminara. A inveja, a incompreensão e a burocracia manifestaram-se em suas tristes características com invocação de aspectos legais, normativos, éticos e profissionais. A necropsia, nas informações iniciais de cirurgião da polícia pôde até sugerir a incidência de febre tifóide e não da real doença, confirmada, sem dúvida, por seus caracteres. Por outra, em manifestações mais cruéis foram cogitadas as possibilidades de suicídio e de homicídio, sendo este não desejado mas decorrente da intervenção do dr. Chávez. Este, aliás, chegou a enfrentar ameaça de processo judicial. Felizmente, a palavra autorizada e precisa do prof. Villar, em evocação do martírio e do mérito de todos os participantes, conseguiu o ambiente tranqüilo final.
No decorrer do tempo ocorreram cogitações frias e especulativas sobre o próprio comportamento de Carrión. Elas encontram-se sintetizadas nas manifestações do dr. Myron Shultz, do National Communicable Disease Center, em Atlanta (U.S.A), publicadas no New England J. Medicine, de 13 de junho de 1968. Inicialmente, a possibilidade de ocorrência apenas acidental no reconhecimento da unidade mórbida, não tendo sido este o objetivo real da experimentação. Além disso, especulações pouco respeitosas sobre a atuação de jovem inexperiente, talvez sem noções exatas sobre a gravidade da evolução.
Torna-se difícil uma avaliação precisa dos acontecimentos particularmente desta última restrição, mas a análise atenta dos fatos nos revela a nobreza do gesto. E três ocorrências devem ser lembradas:
A) O conhecimento da alta gravidade da doença, se não cogitado de início, esteve presente durante o período evolutivo sem que provocasse qualquer manifestação de arrependimento.
B) Em plena fase demolidora forneceu seu testamento espiritual em frases muito claras. Falou a um colega que esperava ter feito contribuição importante à medicina, expressando-se com um apelo significativo: "Agora cabe a vocês a tarefa de terminar a obra que iniciei, segundo o caminho já traçado". E, ainda, a comovente declaração a um amigo antes da prova: "Se morro, não importa o sacrifício da minha existência, se com ele presto um serviço à humanidade sofredora".
C) Consciente da sua responsabilidade médica deixou anotações sobre seu estado durante a evolução do processo, só interrompidas quando o mal anulou todas as atividades.
Por outra, devemos ter presente que Carrión forneceu dados fundamentais, específicos ou não, mas significativos para a época, muito bem ressaltados pelo historiador Jorge Basadre: a importância do método experimental defendido por Claude Bernard, afastado de discussões e controvérsias estéreis, a unidade da doença, a possibilidade de sua inoculação e, ainda, a diversidade biológica em medicina.
A enfermidade encontra-se, hoje, reconhecida e esclarecida. Trata-se, como é sabido, de uma Bartonelose, infecção produzida pela Bartonella bacilliformis. Nem sempre manifesta-se com gravidade, não sendo rara na infância sob forma eruptiva. É conhecida também pelo merecido nome de Doença de Carrión.
A importante conquista pouco representou no exterior, ocorrência não estranha tratando-se de enfermidade local em país da América Latina. Seu exemplo, entretanto, permaneceu e ainda se mantém. Não apenas em seu país, mas em todos os locais onde a Medicina é altruísmo e pode receber um sacrifício de seus artífices.
*Agradeço ao colega peruano José Bocanegra e ao sr. Enrique Palacios Reys, cônsul do Peru em São Paulo, pelas valiosas informações.
Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt