A Medicina em Meu Credo

As palavras de hoje vêm de longe e revestem-se de significação particular. No dia 4 deste mês comemora-se a data de minha posse na Faculdade de Medicina como Professor de Clínica Médica. Em um período de cinco décadas a medicina evoluiu de forma excepcional em todos os seus setores, mas o trabalho e os deveres dos médicos persistem em sua integridade. O sofrimento é inerente à vida e não pode desaparecer.

Nesta data, tão expressiva, desejo falar aos colegas e aos discípulos o que nunca deixei de falar, ou seja, o que acredito essencial ao exercício da medicina clínica. Aproveito, então, a mensagem de um CREDO que formulei em agosto de 1970 e foi publicado na Revista do Hospital das Clínicas. Já fiz uma rememoração de tipo diverso, no "Boletim do Centro de Cardiologia Não Invasiva" (1996), na qual analisei a Medicina como ciência. E nesta, como acentuei acima, dirijo-me aos companheiros de trabalho. Não há dúvida que várias das considerações são quase óbvias, mas esta circunstância não me afasta do caminho que desejo percorrer.

CREDO

CREIO na Medicina que é ato contínuo de aprimoramento; que evita, na sucessão dos dias, o aniquilamento de um patrimônio cultural que é a própria razão de seu mister; que não cessa de buscar, nos homens e nos livros, a forma correta de se exercer.

Na Medicina que exige o fato atual, mas não o recebe com passividade; que analisa o dado novo pela segurança das medidas que o forneceram e através da experiência conseguida. Medicina que defende, mas não reverencia a própria opinião; e que aceita a informação, se adequada, provenha ela de autoridades consagradas ou de humildes trabalhadores.

Na Medicina que procura não apenas o combate à doença e sua prevenção, mas também o avanço do conhecimento científico; que investiga, compara, discute e conclui. Não tanto para a exaltação do próprio prestígio, como para o progresso do homem, porque sabe que a recompensa do investigador não é a obtenção de prêmio, mas o privilégio de ter trazido seu grão de areia ou seu tijolo ao sempre renovado edifício da verdade científica.

CREIO na Medicina que é ato de resposta às necessidades da Pátria. Medicina lúcida e vigilante, atenta aos problemas nacionais e apta para intervir. Medicina responsável e solucionadora, que não aguarda o chamado da coletividade, mas procura atuar antes desse apêlo.

Nunca deformada por estreita visão do local em prejuízo do universal; nunca amesquinhada por demagogia ou por interesses pessoais; nunca aviltada por ideologias políticas corruptas e corruptoras.

CREIO na Medicina que sendo, técnica e conhecimento, é também ato de solidariedade e de afeto; que é dádiva não apenas de ciência, mas ainda de tempo e de compreensão; que sabe ouvir com interesse, transmitindo ao enfermo a segurança de que sua narração é recebida como o fato mais importante desse momento. Medicina que é amparo para os que não têm amparo; que é certeza de apoio dentro da desorientação, do pânico ou da revolta que a doença traz.

Na Medicina que serve os doentes e nunca se serve deles.

Como se verifica, estabeleci três setores que se mantêm interligados apesar de suas características. Em primeiro lugar, uma exigência fundamental que já acentuei em vários artigos: a do aprimoramento ininterrupto dos conhecimentos. Seria inadmissível a presença de um profissional estático, marginalizados, mantendo apenas o que sabe, mesmo que este já seja amplo. A evolução da medicina atual, como é óbvio, exige muito mais de nós que na época do nascimento do CREDO. Compreendemos e aceitamos a observação desrespeitosa de Lentin ("A frase mais imbecil de todos os tempos") em seu livro Penso, logo me engano, sobre a palavra do grande químico francês Berthelot de que "para a ciência o mundo de agora em diante não tem mistério". E isto em 1887!

Devo acentuar que a recepção de novos dados não pode estar limitada à mera informação. Neste campo de aquisições ocorre diferença básica entre o docente e o clínico prático. Este pode apenas assegurar-se do caráter do que exposto e de sua procedência. O docente, mesmo que não pesquisador, deve ultrapassar a faixa da informação, com a mente dirigida às implicações da ocorrência, não apenas como fundamento do que previsto, mas como fonte de novas interrelações. A medicina exige o fato novo, não recebido com passividade, mas através da experiência ou do conhecimento já adquirido.

Essa posição crítica adquire interesse particular quando de certas condutas atuais, como a engenharia genética e a manipulação do feto. São conquistas de elevado poder e que, certamente, constituirão os fundamentos da nova medicina a ser vivida nos anos futuros, mas exigem consciência em suas aplicações. Há cerca de vinte anos a professora June Goodfield, da Universidade Rockfeller, em seu livro de real interesse, Brincando de Deus, analisou aspectos médicos e sociais dessas disciplinas em suas necessidades éticas, nem sempre respeitadas. As atividades ulteriores confirmaram nossas expectativas, mas também nossos limites.

Por outra, é evidente o dever de segura defesa de nossas próprias idéias, mas não sua reverência obstinada perante eventuais críticas, então procedentes e justas.

O segundo setor do CREDO focaliza aspecto fundamental, quando analisado sob todas as suas faces, embora algumas delas estejam além do alcance dos colegas. Revela a consciência do social, a visão do patamar de vida, o interesse pela coletividade. E deve ser entendido como resposta obrigatória às necessidades, mesmo as modestas, de núcleos carentes.

O desempenho dos médicos tem sido valioso nos imperativos dos grandes acontecimentos, assim no combate a determinadas endemias e epidemias. E não preciso invocar o exemplo de Oswaldo Cruz aos médicos de hoje.

Lamentavelmente, entretanto, a situação é totalmente diversa na atitude de amparo oficial às populações economicamente desprotegidas. Em nosso país ela constitui apenas sombra do que deveria ser. Na maioria dos casos é oferta de aparências que apenas mascaram a miséria e as carências. Esta situação, tão preocupadora, é crônica e não se modificou desde o nascimento de meu CREDO , em 1970.

Não me refiro, especificamente, a fenômenos peculiares, como a ressurreição de doenças aparentemente mortas como a tuberculose, a sífilis, a malária e, nem mesmo, a persistência da Doença de Chagas. A realidade do sofrimento está na ausência do que é essencial ao bem-estar de nossos irmãos, mesmo aceitando-se uma relativa pequenez nesse conforto.

As ocorrências, tão conhecidas, vêm sendo ressaltadas quase diariamente por nossos meios de comunicação, mas pouco agem na mente dos responsáveis. Desprovidas do mínimo, famílias pobres vegetam na fome e nas enfermidades, sem esperança e sem futuro.

A experiência tem evidenciado que as "necessidades do país" em geral não exteriorizam "necessidades urgentes" para governos e políticos. E que medidas saneadoras apenas comparecem como promessas nos períodos eleitorais. Não estou em condições de analisar, com imparcialidade, se ocorrem problemas de recursos, de iniciativas ou de consciência. A probabilidade é a da presença de todos, mas a tristeza das situações desmoraliza quaisquer explicações. Não se deseja oferta simplória de soluções parciais e pouco eficientes que não fornecem benefícios duradouros e que mais se avizinham da demagogia que do sincero propósito de auxílio. No CREDO estão claras as advertências contra atuações que merecem repulsa. No momento em que redijo estas reflexões algumas providências vêm surgindo de forma que reerguem a esperança, mas o alvo essencial ainda se mantém distante. E a experiência dos últimos trinta anos mais me aproxima do cepticismo que da confiança.

Nesta situação a minha medicina apenas crê nos que agem com constância e com consciência. Para que nos ambulatórios, nos hospitais, nos postos de Saúde e em planos de ação sejam os orientadores na assistência e no amparo; para que tantos não lutem pela atenção de tão poucos.

Essa tarefa não deve claudicar mesmo perante problemas de vulto. Como já afirmei em antigo discurso de paraninfo "ela não pode ser comprometida por paixões de momento ou por conjunturas político-sociais, mesmo que aquelas sejam legítimas e estas constrangedoras". E, ainda que "essa assistência médica não deve refletir, em sua pureza, a mínima parcela desprendida de eventuais controvérsias de momento".

O terceiro setor do CREDO ressalta situação que já discuti nesta coluna em maio do ano passado. Ainda vive em mim antiga e sempre renovada preocupação pelo distanciamento afetivo do médico diante da pessoa que procura seu apoio.

Ocorre certa distorção de valores, como se o tratamento apenas se limitasse ao combate à doença, em atitude de quem defronta-se com seres inertes que não falam, não sofrem e não imploram, mas apenas exibem a precariedade física. Esse comportamento foge às minhas crenças, mesmo se acompanhado por terapêutica adequada.

Ele deforma e descaracteriza a própria pessoa do médico. Facilita a mercantilização do ato clínico e, então, a possível submissão a interesses inaceitáveis, embora atraentes. E cria ainda, atitudes de desrespeito e de fuga a responsabilidades do momento.

Tenho observado sua presença mesmo em atuações corriqueiras e modestas que depõem pela frieza do profissional. Menciono apenas uma ocorrência que, em sua singeleza e simplicidade documenta o fato. Por razões sociais freqüentemente surgem pessoas pobres no portão de minha residência com receitas médicas, em busca de auxílio. E não raramente sinto-me surpreso e mesmo revoltado pelos medicamentos aconselhados: drogas dispendiosas e nem sempre necessárias a um tratamento adequado. É evidente que o indivíduo sem recursos não esteve presente na consciência do clínico.

No fim desta exposição acredito na mensagem do CREDO, ou seja na atenção dos leitores às razões pelas quais a Medicina que ele exige é única que, em meu espírito, merece esse nome. E, por isso, o relembro nesta coluna. Creio que ele não envelheceu e espero que nunca envelhecerá.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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