A Lenta Ascensão das Mulheres em Medicina

  As atividades das mulheres em medidas curativas desenvolveram-se com grandes oscilações em todos os tempos e em vários países. E os percursos não foram tranqüilos. Na antigüidade as mulheres desenvolviam a medicina com persistência e sob confiança. Encarregadas do apoio aos grupos familiares, atuavam, também como curandeiras. Falavam com os deuses e transmitiam suas mensagens. Eram as fontes de novas vidas pela capacidade reprodutora e, então, criadoras amparadas e respeitadas.

No Egito antigo, as parteiras e as curandeiras não eram profissionais, mas agiam como se fossem. Várias estrelas de há milênios expõem as sus tarefas protetoras. E não podemos esquecer a grega Panacéa "que conhecia todos os remédios". Depois, uma sinuosa evolução através de centenas de anos e de ambientes diversos, mas sempre escurecida por restrições e preconceitos. Em uma grande síntese desejo recordar algumas situações limitadoras que comprometiam ou impediam o exercício médico feminino.

a) Em primeiro lugar as próprias características biológicas que provocavam reservas pelos estados periódicos da menstruação, da gravidez, da lactação. E ainda ouvimos a advertência injusta de Galton sobre as que "eram apenas cubas vazias para reprodução".

b) As condições sociais, familiares, culturais e econômicas, com significação variável, mas sempre atuantes.

c) As resistências enfrentadas nas buscas de conhecimento, seja nos estudos preliminares em escolas desvalorizadas, seja no preparo profissional. Assim, o aprendizado em faculdades apenas destinadas a mulheres e somente presentes em alguns países.

d) Certa rejeição, quase geral, às portadoras de alguma cultura ou às desejosas deste atributo, que as levava, na Idade Média, à internação em conventos.

e) Atividades curativas restritas às classes pobres e, mesmo nestas, recebidas com desconfiança.

f) Eventual reserva dos próprios familiares quando do regresso do aprendizado em grandes cidades.

g) Períodos de repulsa às atividades médicas femininas, como uma verdadeira "caça às bruxas" no século XIV.

h) Necessidade de disfarce masculino para certas tarefas e para diferentes estudos durante o século XIX.

Apesar da vivência em ambiente hostil, exceções honrosas compareceram e marcaram a História com suas atitudes. Há confirmação de jovens, filhas de médicos, em geral obstetras, que substituíam os pais em emergências e mesmo em ocorrências graves. São apenas algumas, mas representam um mundo que não se submetia passivamente.

Deve ser lembrada a quase lendária abadessa beneditina, alemã, conhecida hoje como Santa Hildegard (1098-1179) embora não canonizada pela igreja católica. Além de profecias e de visões, executou trabalhos médicos, entre vários outros, místicos, teológicos, biográficos. Parece ter conhecido a obra de Galeno, manteve contato com a Escola de Salerno e emitiu opiniões sobre psicologia e fisiologia. A ela tem sido atribuída a autoria do primeiro livro médico, na Alemanha, sobre causas e curas das doenças.

Em meados do século XVII surgiram textos em língua inglesa escritos por mulheres. Em geral dirigiam-se a grupos restritos de amigas com características intelectuais comuns. A alta posição social de algumas atraía homens aristocratas, para experiências químicas, embora sem o interesse que dedicavam às suas tarefas "masculinas".

A evolução feminina manteve-se com amplas oscilações durante séculos, mas sempre sob o manto de reservas e preconceitos. No início deste século, as médicas ainda viviam situações constrangedoras, como as críticas às suas modalidades de vida, com roupas do tipo masculino, hábito de fumar e atividades mais livres. E ainda, as ocorrências limitadoras e desalentadoras, como a marginalização em Faculdades, a sabotagem a solicitações, a resistência a cargos e postos de responsabilidade, a crença disseminada sobre menor capacidade intelectual quando comparada à dos homens.

Em verdade, até em períodos recentes certos acontecimentos nos causam espanto, inclusive a grande heterogeneidade observada em países diversos. Em 1900 cerca de 3.500 médicas haviam se graduado nos Estados Unidos, em 1914, apenas 500 na Inglaterra. Na Alemanha de ontem (1955) apenas 4,8% dos cargos universitários eram exercidos por mulheres.

No início do século o grande físico Max Planck admitia apenas a "possibilidade" de preparo especializado feminino, embora essa ocorrência fosse "rara". E, como expressivo complemento, a curiosa, incompreensível e triste ocorrência mencionada por T.N. Bonner em seu livro sobre a educação médica feminina (1992). Em 1948 o National Health Service (Inglaterra) passou a fornecer suporte financeiro a escolas médicas que aceitassem alunos de ambos os sexos. Uma escola londrina, entretanto, opinou pela impossibilidade dessa situação sob a desculpa de ausência de sanitários femininos e de dúvidas pelo que aconteceria ao seu time de rugby!

Felizmente, em evolução lógica e desejada, a atividade médica veio se igualando em ambos os sexos. Podemos aguardar o fim do século com confiança no trabalho comum, mas vozes autorizadas ainda trazem alguma preocupação, como ecos do passado. Relembro apenas as palavras de duas autoridades norte-americanas: as da dra. Sandra Levison, do Medical College Pensylvania, no XV Congresso da Associação Paulista de Medicina, em 1995 e as de Marian Limacher, de Gainsville, coordenadora de reunião de almoço em Congresso do American College Cardiology, em Anaheim (1993), sob o tema Women in Cardiology, Barriers, Challenges and Opportunities. Ambas focalizaram certas sombras no presente e almejaram futuro mais tranqüilo.

AS MENOSPREZADASApesar de tantas ocorrências em todo o mundo ainda são estranhas as injustiças cometidas por pesquisadores premiados, em verdadeiro menosprezo pela colaboração de suas auxiliares. Várias destas com atividades fundamentais nas investigações em diversos setores da ciência e que permaneceram quase ignoradas. A lista não seria longa, mas citarei apenas dois exemplos expressivos relacionados à medicina.

O primeiro refere-se ao papel da cristalógrafa Rosalind Franklin no reconhecimento da molécula do DNA. É sabido que Francis Crick e James Watson, do Cavendish Institute, de Cambridge, em abril de 1953 comunicaram ao mundo científico a grande descoberta da estrutura cristalina daquele composto. E, em 1962, com Maurice Wilkins , do King’s College, de Londres, receberam o prêmio Nobel. Rosalind trabalhava nesta instituição e participou dos trabalhos sucessivos. Não foi, entretanto, premiada e sua contribuição permaneceu na sombra.

Os depoimentos da época revelam que o ambiente em Londres não era amistoso, desde a chegada da pesquisadora, talvez por seu caráter obstinado, interessada então, no estudo direto do DNA e não no da difração dos raios X, o trabalho de Wilkins. Desta forma, as pesquisas diversas comprometiam o sucesso. A colaboradora, entretanto, manteve-se no caminho escolhido, dedicando a ele todo o seu tempo. Sua importante contribuição pode ser avaliada em ocorrências básicas: fornecimento de dados fundamentais em relatórios manuseados por Watson, análise crítica de modelo proposto por Pauling para o DNA e, principalmente, o reconhecimento da sua estrutura com a congruência circular que o caracteriza. Foi entretanto ignorada e assim faleceu prematuramente em 1958. O próprio Watson em seu clássico livro "A Hélice Dupla" reconheceu a importância dos dados que recebera e menciona seu aproveitameno da autora.

O outro exemplo é o de Barbara Mc Clintok, bióloga norte-americana que, na década de 50, iniciou estudos sobre herança fundamentados na genética molecular. Durante cerca de trinta anos manteve-se reservada sob preconceitos ligados ao sexo, com trabalhos em milho, que contribuíram para a concepção atual do mecanismo da herança. E que não atraíram a atenção merecida. Não fez esforços para ser reconhecida, como se bastasse apenas a auto-observação, imparcial, sobre o mérito do que realizava. Obteve finalmente a justa recompensa do prêmio Nobel, em 1983, mas já em idade avançada.

Essas tristes ocorrências vêm, entretanto, agindo como alertas contra a discriminação sexual e devem estimular protestos dos que podem protestar, dado o habitual silêncio dos que deviam fazê-lo. As conclusões desta curta apresentação de uma longa viagem são otimistas. As mulheres percorreram um velho caminho sinuoso, áspero, rico em obstáculos e em interrupções, mas souberam persistir e conseguiram avançar. Não houve omissão coletiva, mas lutas, mesmo que isoladas, evitando o desânimo e a imobilidade. E elas trouxeram também seus atributos paralelos de carinho e de paciência para a categoria da ciência, para a eficiência da medicina, para a saudável parceria dos sexos.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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