A Cultura Humanística na Cultura do Médico

Na coluna desta edição analisamos um aspecto que, embora óbvio, merece ser acentuado. A cultura humanística é desejável para todos, mas é requisito importante para os que, como nós médicos, ocupam posições de responsabilidade social e participam da dor e do sofrimento.

Esse atributo não é habitual nas atividades de hoje. Em geral o aluno dirige todo o interesse a estudos especializados e torna-se o médico que é essencialmente um técnico.

Desejo expor, então, como vejo a cultura: base importante para a formação profissional e que contribui para elevar nosso tipo de vida. Em seu amplo campo de ação certas conquistas devem ser analisadas.

Em primeiro lugar ela estabelece necessária hierarquia de valores. No fim do século passado e no início deste, mantinha-se viva a crença de que o futuro do mundo estava nas aplicações da ciência. Esta nos traria não apenas a saúde, mas também a paz, a harmonia, o bem-estar. Ela não trouxe e não trará esse paraíso. Essa limitação não reduz seu grande valor, mas não é o mais elevado dentre os valores.

O grande médico, teólogo e músico Albert Schweitzer já insistia sobre a desproporção entre a evolução da ciência e a evolução da moral. E o médico culto alcança com maior precisão as ocorrências desfavoráveis de uma crença que quase suprime as outras.

Outro aspecto significativo é o do interesse pelo impacto das descobertas científicas sobre a sociedade. Não apenas as relacionadas à medicina, mas as que, oriundas de qualquer setor, podem modificar o futuro.

Tenho observado que nossos pesquisadores isolam-se em seus campos de trabalho e, com esse comportamento, distanciam-se da atitude de outros cientistas que, como os físicos, por exemplo, preocupam-se com as aplicações das conquistas. A ocorrência pode ser explicada pela influência algo "restrita" das nossas descobertas, mas a palavra e a advertência dos mestres são sempre orientadoras.

É verdade que atualmente determinadas cogitações médicas já são mais amplas, com elogiável preocupação pela expectativa do que há de vir. É o que ocorre, por exemplo, diante das técnicas de fecundação artificial, das várias modalidades de manipulação do feto, das possibilidades de manutenção da vida em condições extremas e, particularmente, das progressivas conquistas da engenharia genética.

A ciência não é moral ou imoral, mas suas aplicações podem ser nocivas ou indesejáveis. Os exemplos são múltiplos e podem afetar nossa rotina de vida.

Em contato pessoal com vários pesquisadores pude comprovar, quase constantemente, que as interrogações sobre o futuro gerado por trabalhos científicos são privilégios dos homens cultos.

Outra manifestação de interesse é o conhecimento da história da ciência, que pode ser exemplo e norma de conduta. Logo de início avulta a influência do poder de observação. Em nosso campo de trabalho, lembremos apenas de dois exemplos que transformaram radicalmente todas as atividades médicas: a descoberta dos Raiox X e a obtenção da penicilina.

Quando, em 1895, Roentgen defrontou-se com peculiaridades na passagem de corrente elétrica em tubos de Crookes estava diante de fenômeno conhecido, mas seu poder de observação estimulou novas verificações. Por isso, a um repórter que o interrogou sobre o que pensava diante dos fatos respondeu: "Não pensei, apenas observei".

E também Fleming, ao estudar colônias de estafilococos e verificar a contaminação destuidora por fungos, estava em presença da "antibiose", ocorrência já conhecida, mas seu poder de observação, exigiu novos ensaios que trouxeram o gigantesco passo da conquista dos antibióticos. Hoje discute-se o real mérito de Fleming perante os trabalhos ulteriores da Escola de Oxford, mas ele permanece como um criador e essa posição nasceu da observação atenta e fecunda.

O conhecimento da história nos informa ainda sobre as características do método e trabalho. E elas devem ser acompanhadas com atenção para o ensino ou para crítica.

Seria impossível a citação de tantas em tantos campos de investigação e, assim, menciono apenas uma visão pessoal. Em meu percurso científico impressionaram-me, de modo particular, as buscas do casal Curie que forneceram o reconhecimento da radioatividade natural. Ocorreu uma longa permanência de sonhos e objetivos, apesar das condições muito precárias do ambiente de trabalho. Uma lição de fé e de vontade.

Ao lado dessas fontes de interesse devemos reconhecer que a vida enriquecida pela presença das artes é uma dádiva da cultura, embora raramente o impacto artístico favoreça também os menos aquinhoados. A música, a literatura, a pintura, a escultura não são meros refinamentos a preencher momentos de lazer, mas respostas a exigências íntimas de nosso ser. Elas trazem algo que nos eleva, mesmo inconscientemente, e que transfigura os momentos e os dias. Contribuem mesmo para afastar eventuais estados de depressão ou de cansaço, não excepcionais em nossa vida profissional.

Recordo-me que o professor Weisskopf, físico e professor no Massachusetss Institute of Technology recomendava aos alunos em fase de desânimo que se voltassem para a teoria dos quanta e ouvissem a música de Mozart. Esta última recomendação merece integral apoio.

Não é necessário que sejamos artistas, embora o grande clínico Trousseau tenha afirmado no prefácio de seu livro de Clínica Médica que "toda a ciência toca a arte em algum ponto" e ainda que "o pior sábio é o que jamais é artista".

O meu desejo é que nossos colegas não se mantenham indiferentes ao mundo das artes, e então, afastados da elevação espiritual que elas podem fornecer.

Finalmente, o aspecto mais objetivo de nossa análise: a influência da cultura sobre a própria atividade profissional.

É evidente que ela não nos torna melhores, mas favorece a visão do homem doente e, assim, a compreensão de seus problemas. Facilita o êxito da atividade clínica porque aproxima o terapeuta da mente sofredora.

Há anos surgiu um livro de Penfield com o nome de "A Segunda profissão" no qual adverte que o médico, também guardião do espírito, entrará em contato com as pessoas cultas e não saberá orientá-las se carente de cultura. E afirmava, em frase jocosa que a Faculdade que não fornecesse aos seus alunos uma base humanística "antes de mergulhá-los nas águas da biologia" os manteria em desvantagem profissional.

Como é evidente, o médico que trata de homens, que conhece seus problemas, suas tendências e suas preocupações, deve também ter presente suas obras e suas criações. Se estas iluminam o mundo, aperfeiçoam também os que combatem o sofrimento.

Devo lembrar que em vários textos literários encontramos manifestações impressionantes sobre o estado mental de um enfermo em face da morte. Recordo, por exemplo, o conto "A morte de Ivan Ilitch, de Tolstoi , obra de extraordinária penetração sobre a perspectiva do inevitável. Uma lição inesquecível. E, ainda, embora menos expressivo e menos conhecido, o volume sobre "A morte do pai", da ampla obra de Martin Du Gard, "Les Thibaults".

Creio, portanto, na alta significação da cultura para os médicos de hoje, necessariamente solicitados e atraídos pelas conquistas técnicas que os auxiliam Ela enriquece a vida e aperfeiçoa o trabalho.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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