A Atividade Clínica que Desvaloriza o Enfermo

É sabido que na atividade clínica há um indivíduo que se entrega quase sem reservas a quem confia como apoio e outro que deve atuar com toda a sua capacidade de auxílio. A medicina antiga já estabelecia normas para essas relações com dados sobre os limites ao poder do médico. Todos se recordam do mandamento de Hipócrates, Primum non nocere, que ainda se mantém como lei. E no velho juramento do médico hindu estava presente a advertência "não cause danos ao paciente nem mesmo em pensamento". Esse comportamento não era difícil em épocas em que o exame clínico e a terapêutica apresentavam limitações naturais e compreensíveis. Nas últimas dezenas de anos, entretanto, surgiu a nossa medicina aperfeiçoada em todas as suas faces e agora com reais características de método científico. Houve, portanto, um benemérito progresso que ultrapassou as expectativas de nossos antecessores.

Essa conquista, contudo, trouxe alguns aspectos indesejáveis que vêm comprometendo a necessária harmonia nas relações médico-doente.

Observa-se uma redução acentuada na visão do enfermo como ser humano e uma exaltação das técnicas utilizadas. Em síntese, o enfermo minguou e a maquinária cresceu, ocorrendo a chamada "medicina desumana". A situação, eventualmente muito expressiva, exige meditação, protesto e o desejo de uma transformação que não deve demorar.

Devo acentuar que nesta coluna não são abordadas condições particulares de maior gravidade, mas apenas as relações entre médico e paciente na rotina do trabalho clínico. Diante delas, venho agrupando ocorrências indesejáveis, que devem ser consideradas expressão de uma seqüência de atitudes, na qual a presença de uma favorece o comparecimento de outra.

Há como que uma indesejável evolução no procedimento médico, que percorre, então, uma "escala de atos injustificáveis", todos eles contribuindo para a desvalorização dos enfermos.

A) A perda da visão do homem doente: é ocorrência que caracteriza a situação. Observa-se a doença mas não o indivíduo; permanece uma frieza de comportamento que tende a uniformizar as atitudes dos médicos, em ignorância da heterogeneidade psíquica dos enfermos em suas reações de insegurança, de pânico, de sofrimento. Não raramente ocorre indiferença destruidora que foge dos apelos dos doentes, nem sempre bem expressos, e que reduz os benefícios do tratamento.

Um raciocínio lógico, mas inaceitável, poderia fornecer uma justificativa: a atração e a novidade da ciência perante a monotonia das queixas dos enfermos. Aquela pode fornecer dados pouco esperados ou curiosos que motivam interrogações sempre atraentes, em contraste com a palavra do doente, quase sempre repetitiva. E, mesmo perante eventuais "surpresas" nas informações, o interesse volta-se de preferência para as peculiaridades mórbidas e não para o estado psíquico do enfermo.

Essa interpretação dos fatos, mesmo se real, é a manifestação mais pobre da medicina em seus métodos e em seus resultados.

B) A avaliação superficial do doente: pela anamnese inexpressiva e pelo exame físico incompleto é a resultante habitual da ocorrência anterior.

A anamnese pode comparecer como ato marginal. Ela é básica para o raciocínio clínico e constitui, mesmo, início de tratamento. Na verdade, já é conforto para o portador de algo que o martiriza e mantém a alta significação do momento pela redução benéfica da insegurança.

A observação incompleta pelo exame físico superficial, por sua vez, é tão inaceitável que não exige qualquer comentário específico.

C) A utilização excessiva de métodos complementares: é atitude que vem se acentuando nos últimos anos. Decorrente das deficiências já discutidas, ela é favorecida por características sociais do atendimento clínico, mas também pelas atrações que a técnica fornece, particularmente em médicos jovens. São os "adoradores dos métodos complementares" que só raciocinam com seu auxílio e/ou que também sentem-se enaltecidos pela indicação da alta tecnologia.

É evidente que o valor desses métodos propedêuticos torna essencial sua presença na medicina moderna, mas a crítica dirige-se ao exagero do uso em suas ocorrências de superfluidade ou mesmo de inutilidade. Deve-se ter presente que trata-se de complementação e não de substituição e que a máquina completa o homem e não o homem completa a máquina.

D) A adoção de medidas desnecessárias: constitui uma das situações mais preocupantes por suas conseqüências transitórias ou definitivas.

Dentre inúmeros exemplos, citarei apenas dois relacionados à cardiologia, um referente ao diagnóstico e outro à terapêutica.

1) A presença de artérias coronárias normais em exames de rotina (não em inquéritos epidemiológicos) não deve ultrapassar limites do bom senso, sob o peso da crítica, lógica, de solicitações descabidas.

Ocorrências inaceitáveis, entretanto, são observadas com freqüência. Em trabalho norte-americano de revisão (1983) observou-se resultado surpreendente nos dados fornecidos por centros categorizados: a incidência dessas imagens foi muito elevada, algo menos em homens brancos (20%) que em negros (47%) e mais acentuada em mulheres negras (67%) que em brancas (54%). A presença da alta taxa de normalidade, já expressiva, é agravada pelo aspecto sexual e, em particular, pela distinção entre grupos étnicos.

2) Em trabalho publicado no New England Journal of Medicine (1988) os autores já destacavam no parágrafo inicial a expressiva presença de doentes que recebiam marcapassos sem indicação precisa. Foram, então, avaliados 382 implantes com caráter permanente, realizados em 30 hospitais de Filadélfia, no primeiro semestre de 1983. Em 168 indivíduos (44%) a indicação fora precisa, em 137 (36%) apenas possível e em 177 deles (20%) totalmente desnecessária.

E) O emprego de medidas terapêuticas que acarretam risco: sem, a cautela necessária, completa a escala das medidas analisadas. É atitude óbvia o reconhecimento de que as técnicas de tratamento utilizadas hoje são realmente eficientes e afastam-se das medíocres tentativas do passado. Elas podem, entretanto, ser nocivas e assim devem ser avaliadas.

Em eventualidades mais comuns ocorrem reações moderadas ou graves que alertam os terapeutas e permitem interrupção do ato, mas em outras, particularmente durante testes medicamentosos, pode ocorrer a morte. As publicações vêm evidenciando que as possibilidades não são excepcionais. Mencionemos apenas que duas das principais revistas (Lancet e New England Journal of Medicine), na última década, constituem fontes autorizadas sobre a preocupadora taxa de mortes nos ensaios terapêuticos. Em verificação algo superficial as drogas mais nocivas no campo da cardiologia vêm sendo os antiarrítmicos e as com ação inótropa sobre o miocárdio.

Essas ocorrências já são expostas há anos. Há três décadas realizei averiguação baseada em dados da revista Clinical Pharmacology and Therapeutics que mantinha capítulo sob a expressiva denominação de Diseases of Medical Progress. E as informações foram impressionantes: em 1964 eram mencionadas 86 reações nocivas com 17 mortes, em 1965 respectivamente 58 e 15 casos e, em 1966, 89 e 25 ocorrências.

É evidente que essas taxas, mesmo elevadas, possuem expressividade reduzida perante o enorme volume dos enfermos tratados e a sua provável gravidade. Em casos de morte, entretanto, não procedem raciocínios otimistas sob bases estatísticas. Trata-se de ocorrências que exigem a justificativa de um ato.

O panorama analisado requer a presença de medidas corretivas: normas de conduta "mais médicas", ou seja, realmente dirigidas ao bem-estar total dos pacientes. O clínico não pode ser apenas receitador de remédios, solicitador de exames complementares ou investigador frio e impessoal. Na proximidade do enfermo a legitimidade de um ato médico não está apenas no conhecimento científico, mas também na integral assistência ao que sofre.

Em meu espírito a preocupação pelo que vem ocorrendo é um sentimento que se acentua no já longo percurso dos anos.

Alimentado e agravado pelas palavras dos doentes, inconformados diante do que observam e o que recebem. E que afloram como queixas irreprimíveis mesmo nas situações habituais de sucesso do tratamento. A doença desapareceu, mas o médico não forneceu sua presença, ainda quando indispensável.

Como já disse em meu CREDO , publicado há 20 anos, "creio na medicina que, sendo técnica e conhecimento, é também, ato de solidariedade e de afeto; que é amparo para os que não têm amparo, certeza de apoio perante a desorientação, pânico ou a revolta que a doença traz".

Sem essa atitude não haverá medicina, mas apenas um rótulo de atuação.


Prof. Dr. Luiz Vénere Decourt

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